sexta-feira, 25 de julho de 2014

REFLEXÃO DO DIA

Fonte: Ninhodogavião, 2014

Muitas vezes não contamos com imprevistos no meio do caminho. Imaginamos um mundo surreal e passamos a fantasiar tudo que vivemos na nossa vida. Certamente a fantasia é necessária, mesmo que sonhando estar pisando em gramas, mas na realidade os nossos pés pisam em espinhos. É assim muitas vezes. 
A vida tem suas pegadinhas, por isso usamos aquele velho ditado: "a vida é uma caixinha de surpresas", mas é muito mais que isso! Por isso vamos viver intensamente o dia de hoje, nossas fantasias, nossos sonhos, mesmo que imaginando o amanhã, quando sabemos que nem o ontem, nem o amanhã existem. Vamos sorrir mais, mesmo que fosse pra ouvir "sorria você está na Rec...." Eu já estou me arrumando aqui pra sair e espero que os ventos alísios sopram fortes. De uma coisa eu tenho certeza nas minhas fantasias: sempre haverá algo que fará você sorrir muito, muito e muito. Bom dia pra você!

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

CHICA MACAXEIRA, A MÃE DE SANTO QUE RESSUSCITOU: CONTRIBUIÇÕES PARA O ESTUDO DOS CULTOS AFRO-BRASILEIROS EM PORTO VELHO/RO

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O presente artigo é fruto do estudo de caso sobre a nordestina Ceci Bittencout, mais conhecida como Chica Macaxeira, mãe de santo do Terreiro São Benedito, na cidade de Porto Velho/RO, entre os anos de 1914 a 1979, que misturou práticas de Tambor de Mina, Verequete e Pajelança. É considerada como uma das responsáveis pelo início, formação e continuidade da religiosidade afro-brasileira na região. Suas práticas ritualísticas utilizando bebidas como a Chicha e a Ayahuasca, são encontradas na atualidade nas orientações religiosas da UDV, Santo Daime, Umbanda e Tambor de Mina, especificamente nas regiões do Acre e Rondônia. O artigo ressalta os diversos mitos, presentes no imaginário local, sobre a mãe de santo Chica Macaxeira a partir do momento em que o terreiro de São Benedito ou Samburucu como ficou conhecido sofreu vários processos de perseguições e invasões com o intuito de destruí-lo e de acabar com o batuque. Morte, ressurreição e atos de feitiçarias são apontados nos relatos orais, advindo de antigos moradores de Porto Velho, como estratégias e ajuda dos encantados para proteger a mãe de santo, seus filhos e o terreiro de forma geral. Verificar a importância da Chica Macaxeira para a difusão dos cultos afro-brasileiros em Porto Velho e todo o imaginário construído sobre a mãe de santo do terreiro de São Benedito tornou-se o principal objetivo dessa pesquisa.

FORMAÇÃO DOS CULTOS AFROBRASILEIROS EM PORTO VELHO/RO

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O presente artigo tem como objetivo principal investigar a formação dos cultos afro-brasileiros, na cidade de Porto Velho desde o surgimento dos primeiros terreiros de culto, abrangendo esboçando uma breve análise de sua penetração dos anos de 1910 até a década de 1980. Nos momentos de grande impacto migratório se registra a intensificação do surgimento de novas casas de culto de origem diversificada na cidade. O trabalho visa destacar a religiosidade afro-brasileira na região como importante marca cultural da comunidade de afrodescendentes na Amazônia. Identifica os primeiros praticantes da religiosidade afro-brasileira em Porto Velho e realiza uma análise dos contributos religiosos representados pelos diversos elementos culturais trazidos de variadas regiões do Brasil, de cuja dinâmica surge uma ritualística com tonalidade local.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Os vivos e os mortos sociedade medieval – Jean-Claude Schmilt

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Todas as sociedades sempre souberam que o destino humano é a morte, e, por isso, quase todas tentaram imaginar os lugares habitados por seus mortos. Estudando a Idade Média, o autor mostra que os fantasmas são um produto social, ideológico, religioso e cultural que cria vínculos não só entre o passado e o presente – pois é no presente que os mortos renascem entre os vivos -, mas também com o futuro – pois este é o tempo que faz de todos os homens fantasmas em potencial.

O Mundo de Ponta-cabeça - Christopher Hill

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Dentro da revolução inglesa do século XVII, que resultou no triunfo da ética protestante — a ideologia da classe proprietária — houve a ameaça de uma outra revolução, completamente diferente. Seu sucesso poderia ter estabelecido a propriedade comunal e uma democracia mais ampla, poderia ter derrubado a Igreja estatal e rejeitado a ética protestante.

Os grupos radicais que apresentaram essas propostas — diggers, ranters, levellers, quacres e outros — eramformados por homens e mulheres pobres, sem sofisticação ou educação, e, talvez por isso, raramente suas opiniões foram consideradas a sério. Porém muitas de suas exigências, tradicionalmente descartadas como fantasias impraticáveis, aproximam-se do radicalismo de nosso próprio tempo.

O Mundo de Ponta-Cabeça é um retrato não da evolução burguesa que ocorreu na Inglaterra do século XVII, mas sim dos impulsos para uma radical reviravolta da sociedade, violentamente desejada e temida.

Cultura Livre - Lawrence Lessig



Em Cultura Livre, Lawrence Lessig nos convida a rever a história do direito autoral, desde sua criação até sua simples adoção de forma universal nos dias de hoje. Citando casos que variam de experimentos técnicos dentro de grandes corporações aos primeiros dias da aviação, o professor de direito na Stanford Law School mostra como as empresas multinacionais usaram de artifícios legais e tecnológicos partindo do copyright para impedir o nascimento de obras de arte que, em outras épocas, foram consideradas obras-primas ou revolucionárias. Cultura Livre foi o estudo que deu origem ao projeto Creative Commons, ONG liderada por Lessig que visa rever os conceitos de direito autoral e copyright através de um conjunto de licenças.

O livro foi lançado no Brasil durante o II Encontro de Mídia Universitária, quando a Agência de Notícias TU lançou a Licença para a Integração das Mídias Universitárias. A Licença, baseada nos preceitos do Creative Commons, permite que veículos de comunicação independentes e produtores culturais possam publicar suas obras em quaisquer TVs, rádios, revistas, jornais ou sites universitários, criando assim um ambiente de mídia universitária no país. Além de distribuído para os representantes de mídia que participaram do evento e para bibliotecas universitárias do país, o Cultura Livre também está disponível para download em PDF: http://www.4shared.com/office/6sxx922U/Cultura_Livre_-_Lawrence_Lessi.html

História da Sexualidade: O Cuidado de Si - Michel Foucault


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A Margem da Historia - Euclides da Cunha


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Mito e Significado - Claude Levi-strauss


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Viagem ao Brasil (1865 1866) - Luís Agassiz


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Robert Darnton - O beijo de Lamourette


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Marc Bloch - Apologia da História ou O Ofício de Historiador


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Raízes do Brasil


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Visão do Paraíso - Sérgio Buarque de Holanda



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quarta-feira, 30 de março de 2011

Festa de Caboclo: um olhar etnográfico *

ISSN 1807-1783
Autores:
Luciano Leal da Costa Lima**
Marco Antônio Domingues Teixeira***

Resumo:

Nossa proposta nesse artigo é refletir sobre os mais diversos elementos apresentados numa festa de Caboclo, especificamente à solenidade umbandista em homenagem à entidade chamada de “Caboclo Tupi”. Apesar de sua ligação sincrética com o catolicismo, a festa mantem viva a origem nativa, os preceitos e o modo de encarar a espiritualidade do índio, em meio a tudo que lhe foi imposto. Nesse breve olhar etnográfico, apresenta-se o espaço e seus significados, a festa e a sua ritualidade, além das cantigas e das representações criadas no individuo em torno da entidade do Caboclo Tupi.

Palavras-Chave: Etnografia, Religião,Umbanda, Caboclo Tupi, Cantigas.


INTRODUÇÃO

O processo de investigação cientifica da Festa de Caboclo não somente requer uma aplicação de técnicas e de procedimentos pré-determinados em seu escopo, mas que traga os questionamentos propostos pelo pesquisador, aqueles que foram adquiridos na experiência de campo por meio de suas observações e interações com o seu objeto de estudo. E isso não é uma tarefa fácil, haja vista que grandes dificuldades foram encontradas para sistematizar e transformar esses procedimentos em códigos capazes de abrir o entendimento e a interpretação correta de objeto estudado, dessa cultura e da ação desencadeada pelos atores sociais. Aqui, percebe-se a grande importância da interdisciplinaridade que deve existir entre as ciências como a História, Antropologia, Sociologia e Etnografia, que dará ao pesquisador uma postura integradora no momento em que vai aplicar os métodos e as técnicas, sem deixar de levar em consideração o tratamento e a apresentação dos dados pesquisados. Desse modo, a Etnografia deixa de ser entendida como uma ciência que procura ter uma mera característica que trata as informações como quantitativas, mas como ciência que dará significado, qualidade, uma nova perspectiva e compreensão ao objeto estudado.
Nessa cadeia de significados iremos encontrar as duas faces de uma mesma realidade conhecidas como o Mito e o Rito. Para ELIADE (1998), Mito é

“uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares... Conta uma história sagrada; relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’... uma história verdadeira porque sempre se refere a realidade”.

O mesmo autor acredita que nas religiões, o mito é vivo no sentido de fornecer os modelos para a conduta humana, com significação e valor à existência. Partindo desse pressusposto, o que nos interessa é captar o sentido dessas pouco conhecidas formas de conduta, compreender suas causas e a justificativas dadas a elas. O tempo primordial é aquele em que o evento teve lugar pela primeira vez. MALINOSWKI (1926) é quem melhor tentou demonstrar a natureza e a função do mito nas sociedades “primitivas”. Para ele o Mito é:
“Ingrediente vital da civilização humana; uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática; constitui-se expressão de uma realidade primeira, que determina a vida imediata, as atividades e os destinos da humanidade; satisfaz as necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social, e mesmo a exigências práticas”.

Quanto ao Rito é definido como sendo o “Mito em ação”. Ele faz aparecer o Mito; Através dele é que o homem incorpora o mito, ele torna a crença e a transforma em ação, a aplica, torna-a real por meio da celebração. Todos esses elementos estão presentes na Festa de Caboclo estudada e que passaremos a abordar a partir de agora.


O ESPAÇO E A RITUALIDADE

O espaço do caboclo é o espaço das matas, Seu Tupi é um caboclo de pena, morador das matas e detentor de um assentamento no terreiro. A festa em sua homenagem acontece intra muros, nos espaços do terreiro, abrangendo tanto os recintos sacralizados pelos rituais, quanto os espaços profanos reservados à moradia e convivência da familia do Babalorixá.
O espaço onde é celebrado a festa é constituido como um lugar sagrado e toda a natureza assume um caráter animista, pois todas as coisas ali presentes são vivas, aparentam consciência e tem “ânima” . O local é transformado por estar carregado de mitos, um complexo conjunto de coisas que entram, destacando-se a vegetação abundante, as entidades que ali se manifestam, vagueiam e tomam seu lugar. A cerimônia suscitam emoções as mais diversas. Eliade (1998) apresenta uma conotação bem elaborada quando diz:

“Toda a cratofania e toda hierofania , sem distinção alguma, transfiguram o lugar que lhes serviu de teatro: de espaço profano que era até então, tal lugar ascende à categoria de espaço sagrado” .

Dessa forma, o terreiro apresenta-se marcado por dois espaços o sagrado e o profano. O espaço sagrado está repleto de evidências rituais tanto de ordem alimentar quanto de ordem iconográfica e material de aspectos diversos. Todos os rituais que são celebrados pelos adeptos do culto ocorrem nos limites da área sagrada do terreiro.
Assim, os espaços sagrados do Ilê Axé Ogum D’Ajulekan são evidentes para todos os presentes, sejam eles visitantes, frequentadores, clientes ou adeptos do culto. Contudo o acesso e o trânsito por esses espaços são restritos em graus diversos, havendo áreas de acesso exclusivo de poucas autoridades religiosas da casa e outras áreas de acesso mais amplo.

O CABOCLO TUPI E SUAS CARACTERISTICAS

Os caboclos da Umbanda apresentam características e traços bem parecidos, quando se remete e se alude aos objetos e utensílios utilizados pelos seus “cavalos” logo após a incorporação. Esses objetos, como Arco, flecha e cuias, são verdadeiros apetrechos utilizados nos rituais ligados a esse modelo religioso e mostram como as entidades estão sincretizadas com os elementos da natureza e a vida do indígena em particular.
“Seu Tupi Aiá” preserva os traços de uma religiosidade primitiva, tirando da mata os seus utensílios e elementos feitos pelos índios e, por meio dos homens, transportados para os cerimoniais e para os trabalhos dedicados à caridade. Esses elementos culturais e de ornamentações, próprios dessa prática religiosa, apresentam significados próprios e diversos quando examinados os diferentes contextos a eles ligados (vida cerimonial, utilização nos trabalhos). Se tirados do seu contexto, perdem seu significado entre nós (a sua inteligibilidade original). Malinowski (1926) afirma que “... qualquer objeto, costume, ação ou símbolo deve ser estudado em relação ao contexto da vida social do grupo onde ocorre” . O que nos interessa é captar o sentido e/ou significado que esses utensílios trazem nas cerimônias e nos cultos afros em que são apresentados.
Apesar da grande variedades de cores que são características das festas de caboclo e, também, se tenha observado que nas vestimentas de outros médiuns desenvolvidos com a mesma entidade haja a presença das cores amarela, azul e vermelha, as cores verde e branco ganham especial atenção nas vestimentas adotadas para o Caboclo Tupi e estão carregadas de simbolismo próprio.
Para uma breve abordagem acerca das cores utilizadas nas religiões de matriz africana, tomaremos como modelo o que é adotado por Turner . Segundo este autor, os povos africanos dão estatuto especial às cores, sejam através das comidas, dos adornos, das pinturas e velas rituais, etc. Nas festas de Caboclos, essas cores assumem também características e significados especiais. As cores predominantes e mais utilizadas com maior frequência nas religiões de matriz africana são: branca, vermelha e preto. As demais cores, no entendimento e interpretação de Turner, são derivadas dessas três cores principais. Também, nas conclusões de Adolfo (2010) , A cor branca vem a ser a cor dos antepassados, positiva, representando ora a masculinidade, ora a feminilidade. Nos ritos reguladores das menstruações femininas, é a cor da pureza, simbolo da entrada numa nova vida - do renascer da morte para a vida espiritual dentro da religião -, e da renovação; A cor vermelha é a cor de caráter ambivalente, podendo ser positivo ou negativo. Ao mesmo tempo que vem a representar a vida, simboliza a morte ou o sacrificio ritual. Quanto ao laranja e o amarelo, estas cores vem a ser consideradas vermelhas. O uso do preto está inteiramente ligado a crença da necessidade de se expulsar as coisas negativas e maléficas. As cores azul e verde são considerados negros. O uso das três cores é um percurso de fruição espiritual e místico que consiste em libertar o sujeito das mazelas a que foi submetido.
Cheia de simbolos e significados, é preparada a festa mais antiga da Casa. Muitos filhos da casa se reunem para verem render homenagem áquele que acompanha o Babalorixá desde tenra idade. É a Festa Seu Tupi “Aiá”!

PREPARATIVOS PARA A FESTA

Todos os procedimentos adotados para a realização da festa implicam na idéia de submissão à autoridade espiritual da entidade homenageada e de reconhecimento da autoridade das hierarquias religiosas da casa, começando pelo Babalorixá que consagrou o local e que recebe a entidade. Os rituais obedecem à rígida estrutura hierárquica da casa. Todos sabem os seus papéis e o seu lugar na realização dos festejos. O respeito à hierarquia é fundamental pois organiza as dimensões materiais entre os membros do culto e as dimensões espirituais, evidenciando os niveis de autoridade e importância de cada entidade que irá se manifestar durante o festejo. A submissão à hierarquia torna esse processo possivel, pois ele auxilia no processo de transformação do lugar, de um mero espaço físico em um polo de forças sobrenaturais, uma fonte de forças e de sacralidade que permite a todos os presentes comungar nessa sacralidade, interagindo entre si e com as entidades manifestas.

Todas as determinações que a entidade espiritual transmite devem ser cumpridas. Essas exigências podem ser transmitidas através da própria entidade homenageada, manifestada na cabeça de seu filho, ou via uma série de outras situações, tais como as ordens emanadas por outras entidades que se disponha a colaborar e que se submetam à autoridade do caboclo homenageado ou ainda por vias oníricas, mediúnicas, etc. E isso acontece desde o primeiro momento em que o Babalorixá ou Mãe-de-Santo o consulta ou manifesta a intenção de realizar o festejo em honra da entidade. Na casa pesquisada, esse processo se iniciou 60 dias antes do festejo, a fim de saber se o caboclo estaria ou não de acordo com a realização do festejo e com as comidas e bebidas que iriam ser ofertadas a ele mesmo e ao público que estaria presente. Durkheim diz que:

“Os seres sagrados são, por definição, separados. O que os caracteriza é que, entre eles e os seres profanos, há uma solução de continuidade” .

Diversas reuniões foram feitas pelos participantes da casa, a fim de se definir os procedimentos que seriam adotados para o festejo, bem como decidir em que data aconteceria. Esses procedimentos estariam cuidadosamente sujeitados àqueles transmitidos pela entidade festejada. Percebeu-se que aconteceram interdições de diferentes espécies: as de caráter religioso e as que dizem respeito à magia e a beleza que envolve o evento. Nada pode ser feito, iniciado, começado, nada se pode fazer sem uma orientação prévia . Durkheim (2000) diz que não sendo seguidas as recomendações, produz-se o que ele denomina de desordens materiais e penas propriamente dita, que visivelmente se manifestarão por meio de censura ou reprovação pública. Eliade (2001) acrescenta:

“Ao desobedecer, correm-se riscos, como aqueles aos quais se expõe um enfermo que não segue os conselhos de seu médico... a interdição religiosa implica necessariamente a noção do sagrado, vem do respeito que o objeto sagrado inspira e tem por finalidade impedir que falte esse respeito” .

Assim, o caboclo Tupi manifestou seus desejos, suas ordens, suas restrições e interdições ao festejo. E tudo teve que ser feito conforme a sua vontade expressa. Em depoimento oral, o Babalorixá disse que a entidade foi consultada diversas vezes a fim de seguir suas determinações.
Quando uma entidade sobrenatural consagra um local, o mesmo, por esse ato, se transforma num santuário, assumindo aspecto de semelhança com os locais sobrenaturais onde vivem as entidades. Esses espaços sacralizados são perceptíveis através de uma série de elementos, de símbolos ou de ocorrências de rituais específicos. Os simbolos apresentados na festa do caboclo Tupi manifestam uma força sagrada, representam uma manifestação da própria entidade celebrada e recebem dela força que assegura essa proteção e poder aos que deles fazem uso. Eliade (2001) diz que quando o espaço sagrado é consagrado pela teofania, torna-se aberto para o alto, um comunicante com o mundo espiritualista. Essa “Porta dos Céus” dá aos humanos o acesso ao mundo dos seres do além e vice-versa. O autor complementa: “...Santuários são “Portas dos deuses” e, portanto, lugares de passagem entre o Céu e a Terra” .
A festa de caboclo é uma prática umbandista, apresentando toda uma religiosidade reelaborada a partir das religiões de matrizes africanas, incorpora valores e representações espirituais que estão presentes no Catolicismo Romano. O ritual apresenta uma lógica natural e uma simplicidade existente em seus cultos, que lhe dar uma expansão horizontal de práticas ligadas à natureza.

A REALIZAÇÃO DA FESTA

Para a realização da festa de caboclo foi preciso muita dedicação, haja vista que o povo sempre quer ver o local bem organizado, bonito, bastante enfeitado e adornado com os mais diversos elementos que evoquem as representações e os simbolos ligados a entidade cultuada. Certamente é esse um tipo de festa que começa bem antes da data marcada e termina um dia depois. Além da prática ritualista ao homenageado, a casa passou por todo um processo de transformação: pintura, decoração com palhas, folhas, adornos nas estruturas do prédio e das plantas. Para o Caboclo Tupi foi preparado um local exclusivo. Na junça foram colocadas diversas oferendas: frutas (banana, melancia, mamão, laranja, maçã, goiaba, uva, abacaxi, côcô, melão, maracujá e cacau), bebidas (vinho, cachaça, bebidas fermentadas), fumos (charutos e cigarros), velas (de diversas cores e tamanhos), imagens de santos (São Jorge, Oxum – saudada como Nossa Senhora Aparecida), caboclos e objetos indigenas (potes, arco e flecha, cuias, chocalhos e conchas) . A junça é o elemento de destaque e indispensável na festa de caboclo. Um acento foi colocado no local, para que no momento em que o homenageado chegasse, se acomodasse e recebesse os cumprimentos e honras dos convidados.
“Eh, Pai Oxossi....” com este verso que alude ao Orixá Oxossi, o Babalorixá inicia a festa ao som dos atabaques e instrumentos de percussão, entoando-se cantigas sagradas e louvores atribuidos a todos os Orixás adorados na Umbanda. O som é alegre, forte e envolvente, além de bem executado pelos ogans da casa, que juntam suas vozes a do Babalorixá e dos filhos e filhas de santo que formam um circulo e dançam envolta do assentamento presente no meio do Ilê. Num clima de muita alegria, o Babalorixá canta em alto som ao seu Caboclo, que logo se apresenta e incorpora no seu “Cavalo”. Os atabaques batem cada vez mais forte e um a um os caboclos vão se apresentando e se apossando do corpo de seus “cavalos” . É um clima de enorme entusiasmo que toma conta de todos os presentes na festa.
O transe ganha as atenções e um a um os filhos e filhas vão sendo tomadas por seus encantados. Parece existir uma hierarquia nas incorporações. Os mais antigos demoram mais para serem possuidos; percebe-se que têm um maior controle da incorporação, pois estão mais habituados, conhecem mais os sinais que são caracteristicos ao transe. Os atabaques tocam mais forte. Os ogans parecem demonstrar que o máximo de caboclos deverão estar presente na Festa, a fim de homenagearem Seu Tupi e prestarem-lhe as honras. Percebe-se que cada filho ou filha de santo possuido, veste-se com as indumentárias e ferramentas utilizadas pelas entidades. A cada transe, são levados para o Roncó para se vestirem com os trajes completos: roupas alegres e de cores, colares e chapéus de vaqueiros para adornarem suas cabeças, alguns são auxiliados por Cambonas que trazem consigo as bebidas dos caboclos e fumos que lhe são caracteristicos. Seu Tupi se apresenta com suas roupas de cores verde e com detalhes em branco, não somente na “cabeça” do Babalorixá, mas possui a de muitos outros filhos e filhas de santo da casa e, também, de praticantes oriundos de outros terreiros.
Estão todos em terra: caboclos, caboclas, boiadeiros e marujos. As danças apresentam traços que são caracteristicos da entidade incorporada e executam, de uma forma clara, uma estrita codificação corporal, gestual e verbal. Os pés parecem sambar, dançam um frevo, ou dirigem o corpo num ritmo de chote e baião. Enquanto alguns bailam, outros cumprimentam os presentes, sempre respeitando as hierarquias presentes, até os mais simples que se aglomeram nas dependências do espaço do barracão. Alguns frequentadores aproveitam os momentos de transe para pedirem orientações para assuntos de interesses pessoais.
A festa é uma constituição de uma variedade de danças, ritmos e cantigas. São servidos vinhos, cervejas e outros tipos de bebidas alcoólicas. Enquanto alguns dançam, outros saboreiam uma carne assada, que vem acompanha com mandioca. Aos poucos os filhos e filhas de santo vão sendo “desvirados” e retornam ao barracão, para se deliciarem do banquete oferecido pelo Babalorixá.

ANÁLISE DAS CANTIGAS DO CABOCLO TUPI E SEUS SIGNIFICADOS

A festa do Caboclo Tupi é considerada uma festa tradicional pelos frequentadores da casa Ilê Axé Ogum D’Ajulekan e ocorre desde a firmação do caboclo Tupi na cabeça do Babalorixá. Portanto essa é a festa mais antiga e tradicional do que as festas de candomblé que a casa celebra. A festa é uma constituição de uma variedade de danças, ritmos e cantigas. Essas cantigas são mais conhecidas como pontos cantados , uma espécie de utilização mágica do som, ou seja, de acordo com sua entoação e frequências próprias, sustentam vibratoriamente o trabalho mediúnico. Esse clima propicia um estado de transe anímico e a festa, ao som dos atabaques, cria um ar de extrema alegria e expectativa tanto para os adeptos como para os frequentadores e participantes. Esses cânticos podem ser entoados com finalidades diversas: invocar entidades, marcar o inicio de sua incorporação ou desincorporação, criar formas mágicas para determinados trabalhos, abrir e fechar sessões, pedir forças espirituais, afastar espíritos maus, pedir perdão e diversas outras finalidades.
Tratando especificamente do culto voltado unicamente para uma entidade, no caso aqui o Caboclo Tupi “Aiá”, PRANDI (2001) diz que todos os encantados tem cântigas apropriadas para a sua chegada, para a sua dança (enquanto está em terra) e para a sua partida, além de outras que podem ser cantadas em homenagem a eles, sem que os mesmos estejam presentes. Verdadeiras mantras, preces, rogativas, que atuam como “dinamis” da natureza, fazendo com que se entre em contato com as forças espirituais. Ainda, segundo o autor, fazer isso sem conhecimento e sem fundamento, é extremamente prejudicial para o desenvolvimento do culto e à continuidade da verdadeira encantaria.


Babalorixá Hilton Monteiro entoando uma Cantiga de caboclo
Acervo: GEPIAA

Partindo desse pressuposto, analisaremos algumas cantigas entoadas ao Caboclo Tupi no Ilê Axé Ogum D’Ajulekan, que trazem no seus versos os traços de sua personalidade bem como suas características enfatizando, também, uma resumida análise linguistica de palavras onde algumas dentre elas não constam em nosso dicionário, dando sentido ao texto. São palavras remanescentes e que sobreviveram das linguas utilizadas pelos ancestrais, sejam indígenas ou afros que mantém em cada uma das canções.

“Eu estava na minha aldeia
Quando ouvi tambor runfar
Eu pulei peguei o arco e peguei a flecha
E sai para guerrear
Meu Pai mandou me chamar
Eu vim salvar
Eu sou TUPI AIÁ”

Os adeptos dessa religiosidade acreditam que essa cantiga é entoada pela própria entidade logo na sua chegada. Uma espécie de apresentação. Para eles, cada linha cantada pode remonta para uma imagem, remonta um sentimento da própria entidade que o canta.
Logo na primeira linha observamos a palavra “aldeia” que ao ser utilizada na umbanda vem a significar a “falange” que pertence o Caboclo Tupi. Dependendo da linha ou vibração que se origina, o caboclo Tupi pode pertencer a de Oxossi, a Xangô, Ogum, Yemanjá ou Oxalá, que são os Orixás que regem as linhas de atuam dentro dos Terreiros de Umbanda. O som dos tambores é uma espécie de prece que o evoca, convocando a comparecer com seus instrumentos de caça e sempre pronto para a guerra. Os atabaques, objetos sagrados trazidos pelos escravos africanos para o Brasil, são utilizados em todos os rituais das religiões afro-brasileiras e exprimem a identidade profunda de um povo. A eles são atribuidas as simbologias da força e da vida do chefe de uma clã e de todo o seu povo.
Para o Babalorixá Hilton de Ogum, o pai que “o mandou chamar” é seu José Inca Tupinambá, a entidade chefe da falange dos caboclos Tupis. Essa liderança ligada as antigas civilizações Incas, Astecas e Maias que habitaram as regiões ameríndias, é uma entidade portadora de grande sabedoria. Acredita-se também que outras se originam de diversas outras regiões do planeta.
“Eu sou TUPI AIÁ”. “AIÁ” é de origem da palavra Ajaá (do tupi aia-á), que é o nome de uma árvore no Brasil, cuja madeira se presta para obras externas . Para o Babalorixá Hilton de Ogum, o significado de seu nome o remete para a natureza de onde se origina. As árvores carregam o princípio de ancestralidade e estabelecem a dinâmica da relação entre os seres e a natureza. Na mitologia yorubana, a palavra “Aya” ou “Aia” é a divindade dos tambores, enquanto que no dicionário umbandista, vem a significar Toalha Branca para uso em terreiros .

Quando nesta casa entrei
Eu louvei Maria
Quando nesta casa entrei
Eu louvei seu santo dia

Percebe-se o forte sincretismo quando a entidade chega no lugar e reverência Maria, presente nos valores religiosos e espirituais da Umbanda, ora identificada com Oxum quando assume o papel de “Maria Virgem”, ora identificada com Yemanjá quando se manifesta como “Maria Mãe” . É o desconhecido se apresentando e se identificando com elementos já conhecidos, a fim de não causar estranheza. Camargo (1961) diz que isso remete ao sentimento de pertença daquele que busca as religiões mediúnicas e observa que boa parte dos frequentadores se consideram católicos.

Quando nesta casa entrei
olhei para a cumieira
Salvei o dono da casa
E a sua familia inteira
Bandole, ole, olá
Bandole, ole, olá
Bandole é caboclo
Bandole, ole, olá
As saudações fazem parte do comportamento (personalidade) das entidades. O olhar para a “cumieira” é o respeito que se tem aquilo que sustenta a casa.
O verso “Bandolê, olê, olá” está presente em muitas outros pontos de caboclos, sendo mais comum nas cantigas entoadas aos “Caboclos Boaideiros” . Supõe-se que a palavra “Bandolê” derive de duas palavras bantu: bando/banda + olelê/olalá . A palavra bando/banda significa: lugar de origem de uma entidade umbandista (banda, linhagem, zona, província, distrito, parte de uma país); olelê/olalá é uma interjeição de alegria, no sentido de combater com alegria, ou que venha a significar um grito de Guerra, de animação, nos dando o sentido de que a “entidade vem de uma região, de uma linhagem, com gritos de guerra para combater com alegria”. A palavra “Caboclo” vem do tupi “Kareuoká” que significa cobre, acobreado. São espíritos guias das raças ameríndias, que possuem linguajar assemelhado aos dos indígenas .

Surucucu, Cascavel
Venho de Minas Gerais
Piso na folha seca
Vejo a cobra piá

Essa cantiga remete-o para um passado que o liga ao Estado de Minas Gerais, podendo se supor que se trate de uma trajetória de vida historicamente superada. A tese que se pode levantar é a do “fenômeno de reorientação de sua mensagem”. Essa proposta foi defendida por Prandi (2001) , quando apresenta que os referenciais africanos costumam ser transplantados para os caboclos e por estes revividos, a sua possível origem africana ligada as minas, serve de paradigma para a sua origem. Tratar-se de uma composição sincrética com Aruanda, quando abordado a partir do principio de mitificação do remoto.
As cobras Surucucu e Cascavel são encontradas nas regiões do norte e na mata atlântica dos Estados do nordeste. São cobras que seguem o calor dos animais que caça e, por terem um acurado sensor de calor, emitem um som com suas caldas ao perceberem que invadiram seu território. “A cobra pia” é uma afirmativa presente no relato de muitos sitiantes, seringalistas e indígenas.

Onça Tigre é meu cavalo
Surucucu meu gibão
Cascavel minha perneira
Coral é meu cinturão

Nessa cantiga, alude-se a idéia de que o Caboclo Tupi domina animais ferozes como a onça e o tigre, utiliza peças de roupa formada a partir da pele da Surucucu (Gibão - Veste de homem usada durante os séc. XIII a XVII, cobrindo o pescoço até um pouco abaixo da cintura), da Cascavel (Perneira - Peças de couro do vestuário masculino destinadas a proteger as pernas entre o joelho e o pé; são usadas por soldados e campeiros) e da Coral (Cinturão - Faixa larga e ordinariamente de couro, que se traz à cintura para guarda de armas e cartucheiras, ou dinheiro).

Tupinambá é rei
Onde Oxossi mora
Vem ver seus filhos
Que tanto choram

“Tupinambá” é uma palavra de origem tupi. Segundo o Dicionário Aurélio: um povo indígena extinto, da família linguistica tupi-guarani que habitava a costa brasileira, do Pará ao Rio de Janeiro. Na Umbanda, é considerada a entidade-chefe da falange dos caboclos tupis, e a cantiga alude muito bem a isso quando o chama de “rei”. A alusão ao Orixá “Oxossi” é pelo fato de se acreditar que ele seja a força motriz, mítica, desconhecida, a energia que impulsiona ou que alimenta qualquer atividade de origem espiritual . Ele é o Orixá patrono das matas e das florestas. É sincretizado na Bahia com São Jorge e no Rio de Janeiro e Porto Alegre com São Sebastião.

Caboclo vai embora
Pra cidade da Jurema
O bom Jesus tá lhe chamando
Pra cidade da Jurema
Mas ele vai ser coroado
Na cidade da Jurema
Com a coroa de “ai ei ei ô”
----
Caboclo junta a tua flecha
Junta teu badoque
O galo já cantou
O galo já cantou na aruanda
Oxalá te chama para outra banda

Essas duas cantigas são chamadas de “pontos de subida”, é o momento em que a entidade está se despedindo. Os pontos apresentam uma linguagem metafísica . Essa linguagem é recheada de alusões épicas, quando fala de cidades (no caso aqui, a cidade da Jurema), deuses, heróis, coroas e, na maioria das vezes, apresentam referência a um lugar celestial, lugar de repouso e de descanso. No dicionário Umbandista, “Aruanda” significa “Céu, Nirvana ou Infinito significam a mesma coisa, isto é, a morada daquele que é criador de todos os mundos. Trata-se, pois de um dos planos da maior elevação espiritual, ou seja, o céu” .
Elas são cantadas repetidas vezes quanto necessário for, até se perceber a desincorporação dos médiuns.


CONCLUSÃO

Participando de uma Festa de Caboclo, percebe-se a presença de uma história que está ligeiramente ligada a um passado distante e fabuloso, onde os seus protagonistas assumem o papel de divindades e de entes sobrenaturais. Os seus ritos estão recheados de cantigas épicas e que fazem com que os seguidores, se comuniquem com essas entidades e vice-versa. Ao canto de canções ritualísticas, os seres são invocados a repetirem seus feitos milagrosos e, ao reaparecerem, prestar um serviço instrutivo e manipulador de forças contrárias ao bom estado de vida do individuo que pede suas orientações. A Festa do Caboclo Tupi é uma experiência que nos faz enxergar como toda uma ritualística é revivida e, por meio de um elaborado cerimonial, se desperta “do sono” a entidade e a atrai ao mundo dos vivos.
A Festa tem um caráter sincrético, ora utilizando elementos cristãos presentes no Catolicismo Romano, ora apropriando-se de objetos utilizados pelos indígenas das mais diversas regiões brasileiras e, por fim, conceitos e crenças africanas trazidas pelos escravos que para cá vieram, são incorporados ao Culto afro. Evoca-se os Orixás, Inquices, Vodus e Caboclos para que as homenagens e as honras sejam prestadas aquele que é o dono da festa: Caboclo Tupi “Aiá”.


BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Rita "Povo-de-santo, povo de festa: a centralidade da festa de candomblé como potência estruturante da religião" In: Os Urbanitas - Revista de Antropologia Urbana, Edição Aguaforte Assessoria Web, ano 1, vol. 1, julho de 2004. Disponível na Internet no http://www.osurbanitas.org.
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______________ Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 5ª edição, 1998.
FERRETI, Sergio F. Sincretismo Afro-brasileiro e resistência Cultural. Artigo publicado no site: http://www.divinoemaranhado.art.br/pag/grl/lit/0600200001.doc. Acessado no dia 10.06.2010.
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PINTO, Altair (Org.). Dicionário da Umbanda. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Eco, 1990.
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PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do Axé. São Paulo: Hucitec, 1996.
SARACENI, Rubens. Orixás: Teogônia de Umbanda. São Paulo: Editora Madras, 2005.
TURNER, Victor. Floresta de símbolos – Aspectos do ritual Ndembu. Tradução de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Niterói: EDUFF, 2005.

** Graduando em História pela Universidade Federal de Rondônia e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares Afros e Amazônicos – GEPIAA.
*** Doutor em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental pela UFPA. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia. É Coordenador do GEPIAA/GEPRA.

* Você pode ver o artigo com imagens:
1) http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=152
2) http://www.gepiaa.unir.br/index.php/123/article/view/22

SAMBURUCU, O PRIMEIRO TERREIRO DE PORTO VELHO, E DONA CHICA MACACHEIRA.

LIMA, Luciano Leal Da Costa. E-mail: Luciano_leal_lima@msn.com. Universidade Federal de Rondônia (UFRO). Graduando em História e Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares Afros e Amazônicos - GEPIAA - Campus - BR 364, Km 9,5 CEP: 78900-000 - Porto Velho – RO - Fone:(69)2182-2100.

Apresenta-se a história de Ceci Bittencourt, conhecida como Dona Chica Macaxeira, que se fixou por aqui no primeiro qüinqüênio da década de 1910. Praticante de uma religião que sincretizou cura/pajelança com Mata ou Terecô. Faz parte de um grupo de nordestinos que foi atraído pelas grandes transformações sócio-econômicas em curso na região norte do Brasil. É uma das principais figuras que ajuda no processo de fundação do Terreiro de Santa Bárbara e escolhida como a sucessora de “Seu” Benedito, Barbadiano e trabalhador da EFMM, fundador do Samburucu, o primeiro Terreiro de matriz africana e afro-brasileira. O referencial metodológico está ligado a um tipo de procedimento metodológico estabelecido como principal: história oral. O objetivo geral proposto é realizar um estudo de caso acerca de Chica Macaxeira e identificar seu legado sócio-cultural. Os objetivos específicos são: Identificação e caracterização da casa de culto afro-brasileira onde se desenvolveu diversos tipos e variações de cultos de terreiros: a utilização da Chicha e da Ayahuasca nos rituais, prática de pajelança e do Tambor de Mina; Obter o registro do perfil do terreiro, constituindo banco de dados, informações, fotografias referentes às suas práticas de culto, suas estruturas ritualísticas, raízes e vínculos de axé; Identificar o legado sócio-cultural deixado por Dona Chica Macaxeira e pelo “Samburucu”. Por fim, visa-se garantir continuidade aos estudos dos afro-descendentes na Amazônia e a importância da religiosidade afro-brasileira na nossa região. Palavras chaves: Samburucu, Chica Macaxeira, Tambor de Mina.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

POVO-DE-SANTO, POVO DE FESTA - A CENTRALIDADE DA FESTA DE CANDOMBLÉ COMO POTÊNCIA ESTRUTURANTE DA RELIGIÃO

Rita Amaral Antropóloga, PhD


Quem nunca teve oportunidade de ir a muitas festas de candomblé certamente sentirá alguma dificuldade para imaginar o que ela pode representar em termos da estruturação simbólica e social desta religião. Nem pode imaginar, também, a rede de significados e alianças que ela implica e, tampouco, o prazer estético que vai se desvendando desde o momento em que se ouve, ainda do lado de fora do terreiro, o som dos atabaques tocando para os deuses. Para que este artigo pudesse fazer sentido também para os que não sabem o que se passa numa festa de candomblé é que optei por descrever uma das 106 festas a que assisti durante a pesquisa de campo que realizei por 6 anos, como auxílio do CNPq e da FAPESP no candomblé paulista.É claro que a simples descrição não pode dar conta da emoção que envolve os acontecimentos, nem do profundo sentimento religioso com que os participantes encaram a festa. Mas pode servir de referência para a melhor compreensão da análise que faço, a seguir, da festa como fenômeno estrutural do candomblé; não só do ponto de vista da religião mas, principalmente, de seu papel na construção de identidades individuais e de manutenção da coesão das comunidades dos terreiros. E que ultrapassa a dimensão religiosa, espraiando-se pela vida cotidiana dos adeptos do candomblé, criando uma disposição durável (Geertz,1978) específica nos iniciados, delineando o que se pode chamar um estilo de vida (Bourdieu, 1983) do povo-de-santo. Disposição que se revela na cantiga que costuma abrir as festas, quando se chama Ogum, o deus da guerra, cantando: Awon xirê, Ogun!". "Vamos brincar, Ogun!"
Festa de Boiadeiro com Saída de Equede (São Paulo, 1988) "Neste dia, um quente 03 de Dezembro, chegamos ao terreiro aproximadamente às 19:30 hr. Como estávamos sob a vigência do horário de verão e não queríamos estar na estrada escura e sem iluminação, com longos trechos de buracos e curvas sinuosas (e cerca de um quilômetro de estrada de terra) durante a noite, preferimos chegar um pouco mais cedo e esperar na própria roça o início da festa, marcado para as 21 horas. Contudo, a festa, propriamente dita, só começou, realmente, às 24 horas em ponto. Como tínhamos que esperar, fomos visitando as dependências da roça e conversando com o pessoal da casa.
O Boiadeiro Laçador é a entidade mais querida na Casa de Wilson de Iemanjá, o pai-de-santo chefe desta casa (ou o "tata" como se diz no rito angola), também conhecido, entre o povo-de-santo, pela dijina de Zunzodoazambi. Sua roça (terreiro), situada em Parelheiros é uma das maiores e mais bonitas de São Paulo. Sua área construída tem cerca de 3.000m2, num terreno de 2 alqueires. Sendo uma espécie de "sítio", lá Wilson planta muitos tipos de legumes, frutas, verduras e também cria animais como cabras, galinhas, porcos e até bois. Nesta área, foram construídas casas separadas para Exu, Ogum, Xangô, Iansã, Balé (eguns ) e, chamando a atenção de quem chega, uma especialíssima casa para o boiadeiro Laçador, feita de taipa, coberta de sapé, circular, no estilo das malocas indígenas. Esta casa foi construída por descendentes de uma tribo indígena que habita o bairro do Cipó. Estes índios fazem a manutenção temporária da cobertura da casa do boiadeiro, que deve ser refeita de tempos em tempos por causa das chuvas. O chão desta "maloca" é de terra batida e, nos dias de festa como este, coberto por um verdadeiro tapete de folhas de "são gonçalinho", uma erva extremamente perfumada, com um cheiro quembra o do cravo-da-índia e que, sendo pisada durante as danças ou pelo simples andar, espalha seu perfume de modo marcante. No dia da festa do boiadeiro vêem-se, em frente à casa deste, hasteadas, duas bandeiras: a do Brasil, porque o boiadeiro representa a parte brasileira do culto, incorporada pelo rito angola, e a bandeira de Minas Gerais, terra do Boiadeiro Laçador que, segundo Wilson, é "originário da cidade de Diamantina".
Dentro da casa do boiadeiro, pendurados no mastro central, vêem-se o chapéu do boiadeiro, seu laço, suas esporas e boleadeiras; uma cadeira coberta por um grande pedaço de couro de boi e seu assentamento , colorido, cercado por alguidares cheios de frutas, oferendas feitas pelos filhos-de-santo da casa. Junto à parede ficam os três atabaques do culto aos caboclos, pois os que tocam para os orixás (inkices, no angola) não tocam para os caboclos, e vice-versa.
O barracão do terreiro também é muito grande, construído em duas águas, retangular e dividido ao meio, no sentido do comprimento. Separada do espaço onde acontece a "roda-de-santo" por uma mureta que forma um "patamar" sobre o qual ficam os alabês e os atabaques, vê-se uma grande mesa de banquete feita em alvenaria, forrada, nos dias de festa, por esplêndidas toalhas brancas bordadas pelas filhas-de-santo. Esta mesa recebe, durante o ajeun, as personalidades mais importantes do culto. Mesmo assim, poucos são os que ficam sentados à mesa. A maioria prefere comer com o prato na mão, ao ar livre, "batendo papo" mais informalmente. No centro desta imensa mesa sempre existe um enorme arranjo de flores.
Nesta festa o boiadeiro havia recebido, como oferenda, um boi "calçado" por quatro frangos para cada pé do boi, num total de 16 frangos. A carne deste boi seria servida no ajeun, em forma de churrasco, acompanhada de muito chope. Além do caboclo, comeu Exu, evidentemente..
A decoração do barracão foi idealizada por tata Wilson e realizada com a ajuda dos filhos-de-santo. As colunas que separam as duas águas do teto estavam totalmente cobertas por folhas de palmeira, sobre as quais foram colocados grandes arranjos de frutas (comida dos caboclos), entre elas pequenos mamões, melões, goiabas, bananas, laranjas etc. que, além de um efeito muito colorido ainda traziam um delicioso perfume ao ambiente. Nas paredes brancas, muitas folhas e algumas bonequinhas feitas de cabacinhas pintadas. Grandes cascos de tartaruga d'água (cinco, gigantes) ornamentavam as paredes fazendo alusão a Zazi, um dos orixás do pai de santo). Na parede do fundo, onde ficam a cadeira do tata e da mãe-pequena, uma pintura de Iemanjá Ogunté, vestida de verde, com os ombros nus e o rosto coberto pelo filá que desce do adê (coroa). Um arranjo de flores brancas e amarelas ao lado da cadeira do tata completa a decoração. Sobre a mesa enorme, o arranjo também é composto por várias frutas e flores.
Um dos motivos do atraso para o início da festa era o mesmo que acontece em todos os candomblés e em todas as festas: o atraso dos alabês. O atraso de certas pessoas, fundamentais ao andamento das festas em que o pai-de-santo entra em transe (como esta) e deve portanto entregar o comando da festa a outra pessoa, pode retardar o início da festa. Para completar a lista de razões para o atraso, neste dia, a bomba d'água da casa havia quebrado e os filhos-de-santo precisaram fazer mil "acrobacias" para lavar a louça, limpar tudo, e tomar os banhos rituais (maiongas). Outro problema atormentava os filhos da casa: não havia a serpentina necessária para que fossem servidos os 160 litros de chope que acompanhariam o churrasco do boiadeiro Laçador. Todos se movimentavam tentando consegui-la, o que foi ficando cada vez mais difícil à medida que o tempo passava. Telefonou-se para várias pessoas. Por fim, já bem tarde, foi possível alugar uma por 15 mil cruzados que todos acharam caríssimo mas, uma vez que não haveria outra solução, às 11 horas da noite, mais uma cotização foi feita.
Enquanto isso, era possível observar as filhas-de-santo surgindo, aos poucos, impecáveis em suas "baianas" (roupa de festa, com muitos saiotes, pano da costa, camisu etc.) alvíssimas ou multicoloridas. As roupas coloridas sempre faziam alusão ao orixá da pessoa ou a seus caboclos. As rendas também, através de seus desenhos (muito observados pelo povo-de-santo), homenageavam os orixás de cabeça da filha-de-santo. Assim, rendas brancas com pequenas folhas prateadas eram usadas por uma filha de Catendê (deus das folhas); rendas com estrelas e flores para as filhas de Oxum. Leques para as filhas de Iansã, luas para as de Iemanjá e muito richelieu (bordado vazado) para todas e também para os filhos-de-santo, em abadãs e batas, ou em barras de calçolões. Os ojá-ori (panos que cobrem a cabeça) são cuidadosamente amarrados, terminando em "abas". As roupas têm muito brilho, os tecidos são cuidadosamente escolhidos. Muitas pulseiras nos braços das mulheres e dos homens. Muitas contas, muitos anéis de prata, de ouro, de búzios (o povo-de-santo preza muito este tipo de adorno e usa, também fora do terreiro, muitas pulseiras, muitos anéis, muitos colares). Tudo repleto de significado até o último detalhe: a cor, a forma, a quantidade, os números. As mulheres parecem flores, tantos são os saiotes engomados sob as delicadas saias em tecido de renda branca ou colorida, musselina, seda, brocado, lamê, cetim ou algodões estampados em cores vivas. Nos pés, infalivelmente, chinelinhos sem salto (que os iaôs deixam do lado de fora do barracão) brancos. As ebomis (e alguns ebomis homens também) usam um pouco mais de salto. Curiosamente, esses chinelos ou "tamanquinhos" parecem ser sempre um número menor que o pé, pois os calcanhares geralmente "sobram" cerca de 1 centímetro para fora deles. Alguns dizem que isso proporciona uma certa graça à dança. Uma impressão de leveza, de delicadeza.
As ekedes providenciam os últimos detalhes, carregando sobre os ombros cuidadosa e majestosamente suas "toalhas" (símbolo do status e do poder da ekede de "desvirar o santo", mandá-lo embora, o que ela faz colocando essa toalha sobre a cabeça do filho-de-santo em transe e dizendo palavras rituais). Enquanto isso os alabês chegam e começam a afinar os couros dos atabaques ao mesmo tempo em que esquentam as mãos, porque a festa é longa. Logo chegam outros alabês, de outras casas, que revezarão com os "oficiais", uma vez que no rito angola, sendo os atabaques tocados com as mãos (no ketu toca-se com varinhas chamadas aguidavis), o cansaço é bem maior e tocar a noite inteira (cerca de 6 horas, em média) fere as palmas de suas mãos. Eu mesma já vi, apesar do revezamento, as mãos dos alabês sangrarem.
Finalmente ouve-se o som ininterrupto dos adjás, sinal de que o toque vai começar. Tata Wilson vem à frente, todo vestido de branco, com um único ombro de fora, à moda africana, usando contas escuras, acinzentadas. Como o convite dizia que haveria também uma saída de ekede, poderia ser homenagem ao santo dela. Wilson traz nas mãos um adjá dourado de 4 campânulas. As ekedes (e outros ebomis) entram a seguir, todas com suas toalhas e brajás, símbolos da senioridade. Os iaôs vêm em "barcos", ordenados também conforme seu tempo de iniciação. Todos usam seus erindiloguns (colares com 16 fios de contas, soltos, que serão presos em gomos aos 7 anos de iniciação) e mocãs, além de estarem descalços, enquanto os ebomis usam chinelos ou tamancos.
Começa o padê, quando se canta louvando Exu e lhe são oferecidos farinha, água e uma vela. Canta-se para Bombogira, Aluvaiá e outros Exus de angola e alguns de ketu. É o próprio pai-de-santo que, acompanhado pela mãe-pequena, despacha Exu, para que ele vá buscar os orixás. E também para que ele não perturbe a harmonia que se deseja que haja na festa. Por isso ele deve comer primeiro.
Despachado Exu, tata Wilson entra novamente, com a mãe-pequena e as ekedes, sob o dobrar dos couros (deferência às autoridades do culto) que devem dobrar sempre que um ebomi entra no barracão, interrompendo o toque a qualquer momento. Ao som de uma cantiga específica, Wilson acende um cartucho de pólvora e uma nuvem de fumaça branca se espalha no ar. Logo em seguida são cantadas algumas cantigas para a pemba (pó sagrado) e Wilson sopra a pemba em pó (ou efun, no ketu) por todo o barracão. Em sinal de deferência ele oferece a seu irmão de santo, Guiamazi, um pouco de pó para que este sopre. Enquanto isso os iaôs, agachados, e os ebomis, em pé, aguardam cantando:
"O Kipembê, o kipembe ewiza kassanje ewiza d'angola o kipembê samba d'angola"

Só então começa o xirê, que é uma estrutura seqüencial de cantigas para todos os deuses cultuados na casa ou pela nação, indo de Exu a Oxalá. Como sempre, ele começa por cantigas para Ogun seguido por Oxossi e por Catendê (uma divindade do rito angola), depois por Obaluaê, Tempo (outra divindade do rito angola), Nanã, Oxum, Logun-Edé, Xangô, Iemanjá, Ewá, Obá, Oxumarê, Iemanjá e Oxalá.
Quando se toca e canta para determinadas qualidades dos orixás (identificadas pelas cantigas) os filhos destes entram em transe ("viram") e acontece uma coisa interessante: viram também todos os seus irmãos de barco. Ao se cantar para o orixá da jibonã (mãe-criadeira) , viram todos aqueles que foram criados por ela. Ao se cantar para os orixás do pai-de-santo, os filhos todos viram. Ao se cantar para seus próprios juntós, estes viram. Se o orixá do pai-de-santo vira, todos os orixás da casa (mesmo os dos ebomis), viram junto. Com todos esses momentos de transe seria impossível retirar todos os orixás para desvirarem no roncó (pois Wilson já tinha, nessa época, cerca de 70 filhos-de-santo). Assim, as várias ekedes (10 nesse dia, em que também estava sendo confirmada mais uma) desviram os santos no barracão mesmo, através do procedimento já descrito. Apenas o santo do pai-de-santo é levado para desvirar no quarto de santo. Fora isso, os iaôs só são retirados virados, do barracão, se forem vestir seu santo para a dança ritual.
Depois de se cantar para Tempo (cerca de 3 a 5 cantigas foram cantadas para cada orixá, neste dia), os atabaques páram e ouve-se a cantiga tipicamente angola:
"Toté, toté de maiongá ô maiongombê Toté, toté de maiongá"

Com essa cantiga, entra no barracão, coberta por um alá (espécie de dossel), a ekede de Nanã, trazida pela mão de Wilson, que toca o adjá. Ela vem com roupas totalmente brancas (tipo baiana) e com a cabeça totalmente depilada e pintada de branco. Dá uma volta no barracão, saudando os atabaques e o ariaxé e sai, sempre sob o alá, que é segurado por ebomis. Depois disso, o toque continua até as cantigas de Iansã, quando tata Wilson se dirige a seu irmão de santo, tata Guiamazi, e lhe põe nas mãos o adjá, entregando-lhe, com este gesto, a condução da festa. Os filhos-de-santo agacharam-se e continuaram cantando. Wilson e Guiamazi dançam em torno do ariaxé (ponto central do barracão) e Guiamazi agita fortemente o adjá sobre a cabeça de Wilson, enquanto todos cantam para Iansã, até que ela incorpora seu filho. Iansã é o terceiro orixá de tata Wilson. Seu transe é bonito, discreto. Todos os filhos viraram juntos, o que é um espetáculo à parte, pois os orixás gritam seus ilás criando um som único, que só pode ser ouvido num candomblé e quando vira o pai-de-santo. Enquanto Iansã saúda o ariaxé e os atabaques, as ekedes desviram os filhos-de-santo. Depois, Iansã, que veio para dar o nome da Nanã da ekede, é retirada para vestir suas roupas rituais, roupas que o orixá só veste em dias de festa. Quando Iansã sai, é feito um pequeno intervalo e todos saem do barracão (exceto uma parte da assistência, que teme perder o lugar nas cadeiras uma vez que muita gente foi chegando e já havia quase duzentas pessoas assistindo à festa, muitas delas em pé) para tomar ar fresco, fumar, comentar a primeira parte da festa, conversar com amigos, paquerar, fazer perguntas etc. Pergunta-se pelos que não vieram. Geralmente estão envolvidos com a produção de outras festas, filhos "recolhidos" etc. Comentam-se outras festas. Fala-se de qualidades de orixás, como se vestem, o que comem, relembram-se momentos da própria iniciação. Os mais íntimos vão até a cozinha buscar um cafezinho, que a noite já é alta. O céu estrelado, na noite de verão, no meio do mato, onde é possível ouvir cigarras e ver vagalumes, cria uma atmosfera de misticismo e magia. As cadeiras brancas em torno das pequenas palmeiras, espalhadas pelo grande terreiro, são ocupadas para bate-papos informais enquanto se fuma (o que não pode ser feito dentro do barracão). As ekedes visitantes lembram sua iniciação. Comentam a dureza da religião. Alguns, ao ouvirem pedaços de conversa, trocam olhares debochados e maliciosos.
Ouve-se novamente o esquentar dos atabaques, sinal de que o toque vai recomeçar. Todos correm para seus lugares. Algumas pessoas da casa, contudo, já não voltam para a festa, pois devem começar a preparar as coisas para o ajeun (refeição ritual) que, neste dia, sendo churrasco, compreendia acender o fogo da churrasqueira, preparar as carnes, abrir os pães, preparar o barril de chope, os copos etc.
No barracão, Iansã, a deusa dos ventos e das tempestades, deusa do fogo e da sensualidade, entra toda vestida de vermelho, trazendo um maço de flores num braço e um grande leque branco na outra. Ela traz também, de braços dados, a ekede de Nanã. Agora a ekede vem vestida com suas roupas próprias: o ojá na cintura, a cabeça coberta por outro ojá, os brajás e todos os signos que indicam a senioridade, especialmente a toalha. A ekede dançou muito com Iansã as cantigas que lhe são dedicadas, cumprindo assim, já neste momento, uma das funções da ekede, que é a de dançar com o orixá. Ela também secou, com sua toalha, o suor do rosto de Wilson, para que, escorrendo, não perturbasse a dança de Iansã. Depois de algum tempo desta dança, Guiamazi parou o toque e pediu à deusa que dissesse, para que todos pudessem ouvir, pela primeira e última vez na vida da ekede, o nome da Nanã que havia sido iniciada. Este é um momento de grande expectativa, pois os atabaques páram de tocar e apenas os adjás são ouvidos. Iansã gira em torno de si mesma e, num grito rápido, diz o nome da Nanã. Todos os filhos entram em transe e algumas pessoas de fora também. Novamente o som dos ilás, todos juntos, pôde ser ouvido. Os atabaques recomeçam a tocar num ritmo frenético. As ekedes desviram os filhos-de-santo e Iansã, depois de dançar um pouco mais, saúda novamente os atabaques, o ariaxé e finalmente entrega as flores que trouxera nos braços para Guiamazi, em sinal de homenagem e respeito. Depois disso se retira, deixando a ekede no barracão, dançando com as outras ekedes (enquanto isso, os iaôs permanecem agachados, cantando apenas) cantigas que fazem alusão ao cargo por ela recebido e compartilhado pelas demais:

"Ê, ê, ekede zinguê ekede zingá Ê, ê, ekede kissangá"

Depois que a roda de ekedes termina suas cantigas, o toque pára e "vira para caboclo ", através de uma cantiga própria:

"Sequecê di quando andalunda Sequecê di quando eu andá..."
Como o número de convidados é muito grande, em vez de todos se dirigirem à casa do Boiadeiro Laçador, o homenageado, são trazidos para o barracão os atabaques que estavam em sua casa. Tata Wilson volta, dança um pouco as cantigas de caboclo, juntamente com os filhos-de-santo e vira no boiadeiro Laçador. No mesmo momento os caboclos de todos os filhos-de-santo viram também. Todos são levados para vestir suas roupas rituais e segue-se mais um intervalo.
O clima começa a esfriar e, assim, fica difícil permanecer do lado de fora da casa. A região é fria e, na madrugada, ainda mais, apesar do verão. Do lado de fora vêem-se os filhos-de-santo e as ekedes correndo de lá pra cá, com roupas e coisas de todo tipo, a pedido dos caboclos.
Os atabaques recomeçam. Voltamos rapidamente para dentro. Guiamazi grita:
"Xetu marrumba xetu!"

E ao som de "Toté, toté de maiongá" entra no barracão o boiadeiro Laçador. Sua figura é muito bonita, pois tata Wilson é um mulato forte, alto, de ombros largos e rosto expressivo que, vestido totalmente de branco, com atacans que deixam os ombros de fora (nas bordas dos laços dos atacans há um acabamento feito com uma tirinha de pele de onça), um grande chapéu de vaqueiro em couro branco e o inseparável laço, dá a este boiadeiro uma imagem de força, coragem e brasilidade carismática. Ele entra no barracão dançando e, aproximando-se dos atabaques pára e canta sua "ladainha":
"Boiadeiro, prenda seu gado não deixe beber dessa fonte eu venho de muito longe atravessei sete montes.
Quando atravessei o rio Eu vi meu gado na fonte Sou Laçador, senhor do sertão No meu cavalo, trago laço na mão".

Depois disso ele canta mais algumas cantigas de caboclo e dança. Sua dança é vibrante. As cantigas empolgam a assistência, que canta junto, talvez porque agora ela entenda o significado das palavras, o que não acontece com as cantigas em língua banto, pois diferentemente do que acontece nos toques para orixás e inkices, os caboclos cantam em português, com algumas poucas palavras em banto ou tupi. Entram, depois disso, os outros caboclos da casa. Todos se vestem do mesmo modo que o boiadeiro Laçador mas, evidentemente, com cores diferentes, e em cetim. Eles trazem cordões de pano retorcido ao redor da testa e apenas um deles, sendo um caboclo "de pena" (índio) traz uma pena, presa numa fita, atrás da cabeça. Nenhum outro usa chapéu de vaqueiro, também. As cores de suas roupas variam em tons de verde e azul escuro, com detalhes em amarelo, branco e vermelho. Como alguns caboclos que desviraram não tivessem voltado a virar para serem vestidos (os de alguns ebomis que ajudaram a vestir os outros caboclos entre eles), Guiamazi canta uma cantiga que geralmente faz com que os caboclos venham:
"Venha ver sua aldeia..."
Como alguns caboclos insistem em não vir, cantou a cantiga que é considerada "infalível" para chama-los:
"Ainda tem caboclo debaixo da samambaia..."
Todos os caboclos "viram" e os "retardatários" também são levados para vestir. Cada um deles, ao chegar no barracão, canta sua "ladainha", uma cantiga relacionada com seu mito e que é particular de cada caboclo.
Depois de dançarem e cantarem bastante, os caboclos fumaram charutos, beberam seu vinho (a jurema) e o ofereceram aos presentes e, principalmente, deram conselhos a todos. Alguns caboclos foram para fora do barracão, onde o churrasco já começava a ser assado. Como eu permanecesse no barracão com um amigo,, observando a deliciosa dança dos caboclos, um deles, o "seu Gentileiro", veio conversar comigo. Sendo um caboclo de um filho de Oxum, seus conselhos eram sobre amor. Saí, então, para ver o que acontecia lá fora, enquanto o boiadeiro Laçador se retirou para sua casa, onde recebeu o cumprimento das pessoas, conversou e deu conselhos. Formou-se uma fila para isto. Já se comia o churrasco e tomava o chope, ao mesmo tempo em que se conversava com os caboclos como se fossem velhos amigos. Um caboclo de um filho de Oxóssi, "seu Caçador", dirigiu-se a mim. Deu-me conselhos sobre o trabalho e a saúde e, depois de apagar a brasa de seu charuto sob a sola do pé descalço, cortou um pedaço e me deu, para que eu usasse como proteção. Depois disse que sabia que eu tinha um grande amigo que não estava ali e que eu havia pensado nele naquele momento (e devo dizer: pensei mesmo) e ele estava mandando para este amigo o outro pedaço do charuto. Quando olhei novamente, os caboclos estavam em toda parte, dentro e fora do barracão, dando consultas, indicando remédios, dando conselhos.
Num certo momento, alguns caboclos voltaram ao barracão para dançar. O clima foi se descontraindo e do modo grave e sacral como começou, passou a um modo descontraído, pois os caboclos chamaram as pessoas da assistência e demais convidados para dançar com eles. Uma das danças consistia em pular sobre um pé e outro, ao ritmo dos atabaques, sobre um ojá torcido, estirado no chão, sem pisar nele. Quem pisa cai fora e o caboclo chama outra pessoa. Os caboclos jamais pisam no ojá. A alegria é contagiante com a torcida que se forma. Os alabês buscam na memória mais e mais cantigas. Os caboclos sabem muitas. Aos poucos os caboclos vão se retirando e são os homens que começam a cantar suas músicas profanas, as cantigas de "sotaque", maliciosas e provocativas, dando início a uma deliciosa roda-de-samba que vai até o dia clariar. As cantigas de "sotaque" têm letras como estas:
provocação:
"Aqui nesta casa não tem homem Que não seja meu amigo Os homem dorme com homem As mulher deles comigo"
resposta:(insinuando que a pessoa deve se "retirar")
"Fulano quando for dê Lembranças a quem for de lá Corre, viado, Caçador vem te pegá!"
Há ainda outras cantigas, cuja finalidade é a insinuação ou simplesmente brincar maliciosamente:
"Aqui fizeram efó Me chamaram pra comer O efó saiu mal feito Eu quero efó dê no que dê"
"Se na minha roça Você não acredita Encosta mais perto Moça bonita"
"É difícil Conseguir o teu amor É difícil Me dê logo, por favor"
Ri-se muito dessas brincadeiras cantadas que se assemelham aos desafios nordestinos. Do sotaque, passa-se à ao samba-de-roda e à roda-de-samba, com músicas populares, geralmente com sambas de Clara Nunes, Martinho da Vila e Zeca Pagodinho e outros, que geralmente mencionam o candomblé e a umbanda em suas músicas, e que só acaba quando o dia amanhece e o sono chega.
oOo
Desde os primeiros estudos, os autores que investigaram os cultos afro-brasileiros nas diferentes regiões do país, como o candomblé baiano, o xangô pernambucano, o tambor-de-mina maranhense, o batuque gaúcho e a macumba carioca, constataram a realização de festas onde os grupos religiosos se reuniam para louvar seus deuses, que nestas ocasiões possuíam em transe aqueles que para eles eram iniciados. A respeito do candomblé, Nina Rodrigues, no final do século passado, afirmava:
"Chamam-se de candomblés as grandes festas públicas do culto iorubano, qualquer que seja a sua causa" (Rodrigues, 1935:141).
Mais tarde, também Arthur Ramos diria, a respeito do termo candomblé:
"As denominações de candomblés, macumbas, catimbós (...) que inicialmente designavam os festejos fetichistas, por extensão passaram a significar os próprios lugares ou centros onde se realizam as ceremônias. É nos terreiros que são (...) celebrados os cultos comuns e as grandes festas annuaes (candomblés propriamente ditos), afora outras festas profanas chamadas pelos negros bahianos de afochés. É nos afochés que os paes-de-santo 'brincam' com ídolos, cuja tendência à assimilação com os próprios santos é cada vez maior" (Ramos, 1934:42).
Em 1948, Edison Carneiro observava que o termo passara a designar ainda mais: "O lugar em que os negros realizam as suas características festas religiosas tem hoje o nome de candomblé, que antigamente significou somente as festas públicas anuais das seitas africanas" (Carneiro, 1948:43).
Fica evidente, nessas citações, o caráter de sinônimo que o termo candomblé assume para com o termo festa, desde os seus primórdios no Brasil. Mas isto não parece ter sido levado em conta na análise dos vários autores que escreveram sobre ele. Nos estudos sobre as religiões afro-brasileiras a festa foi entendida, geralmente, como o final comemorativo do processo de iniciação, pelo nascimento de um novo orixá, de uma "nova pessoa", ou então como o momento ritual em que os deuses incorporam seus filhos, no transe . Muitos diziam mesmo que o "verdadeiro candomblé não se vê publicamente". Com o olhar voltado para aspectos mais relacionados com os interesses científicos da época, tais como raça, sobrevivências culturais, psiquiatria e transe etc., foi impossível perceber que a festa, mais que um momento ritualizado do transe, é um elemento estrutural e estruturante do candomblé, pois em torno de sua realização é que se organizam várias dimensões da religião sendo, ao mesmo tempo, sua síntese. Ainda atualmente, pouca atenção tem sido dada aos aspectos mais públicos do culto, e no entanto eles se revelam de extrema importância para a compreensão da adesão crescente de vários contingentes populacionais ao candomblé e, também, das estratégias e políticas de crescimento destas religiões. Neste artigo, procuro dirigir o foco da observação para a relevância da festa como elemento estruturante do candomblé, que o explica e é por ele explicada, e que corresponde aos anseios de grupos e indivíduos por relações mais diretas e por espaços de manifestação da individualidade. Sua relevância para a compreensão da adesão ao candomblé é tanta, que escapa do espaço religioso, chegando a constituir os termos da estruturação de um gosto específico, pelos valores hedonicos, dionisíacos, delineando o que se pode chamar de estilo de vida do candomblé. O que é a festa de candomblé
Na festa de candomblé acontece o transe dos deuses em relação aos quais se constrói o pensamento religioso; na festa, a identidade do grupo se manifesta com a sua força total (canta-se na "língua da nação", veste-se de cor ou jeito tal, dança-se de dada maneira porque se é do ketu, do angola, do jeje, do fon etc.); é na festa que toda a organização hierárquica do candomblé se apresenta; enfim, é o momento em que tudo aquilo que o grupo é e acredita em termos de valores religiosos e estéticos se mostra com força total. Não é à toa, portanto, que o termo candomblé passou com o tempo, a designar a própria religião, depois de ter designado o lugar onde as festas eram realizadas. Arthur Ramos chega a apontar o candomblé saindo às ruas, numa versão profana, o afoxé, que até hoje existe e mantém estreitas ligações com esta religião.
Autores contemporâneos também relatam um sem-número de festas realizadas nos terreiros em que fazem suas pesquisas, nas diferentes regiões do Brasil . Tenham o nome e a origem que tiverem, as religiões afro-brasileiras realizam, sistematicamente, festas para seus deuses. E os cultos muitas vezes (e não por acaso) são denominados por termos que indicam aspectos da festa, como a música. É assim que temos o "batuque" no Rio Grande do Sul, em referência à música ritual, tocada por atabaques, ou o "tambor-de-mina" no Maranhão, referência não só ao aspecto musical do culto mas também diferenciando-o dos demais através do termo "mina", que indica a origem étnica do grupo fundante, o jeje.
As festas ocupam boa porção do tempo e consomem uma significativa parte do dinheiro do povo-de-santo, mantendo o grupo coeso em função de sua produção e realização. Ela ocupa uma posição especial na vida dos adeptos do candomblé que, dentro ou fora do terreiro, é marcada pela constante ocupação e preocupação com tais festas. A própria vida dentro do terreiro pode ser pensada como a permanente produção de festas pois inclui, através de aspectos dramatizados ou outros, sua continuidade pelos tempos futuros.
Sendo uma religião cujo panteão é composto, em São Paulo, por uma média de 16 orixás e algumas entidades como Caboclos e Boiadeiros, que são cultuados recebendo oferendas comidas e, principalmente, festas. pode-se ter uma idéia de seu grande número. Lembro ainda que um orixá só pode incorporar regularmente seu filho após ser "feito" (iniciado) em sua cabeça . Ao final da iniciação é realizada uma festa, chamada Festa de Saída (ou Festa de Iaô), pois acontece após o período de recolhimento para a "feitura", momento em que o abiã (aspirante à iniciação) torna-se um iaô (iniciado que, até ter dado a obrigação-confirmação de sete anos, recebe este nome). A iniciação (a "feitura") deverá ser confirmada após 1, 3, 5 e 7 anos de ocorrida, estendendo pelo tempo as festas de candomblé. Cada pessoa tem, ainda, pelo menos mais um santo (o juntó) e, às vezes até 7, compondo o que se chama, no candomblé, de "enredo de santo", e que deverão ser (todos) cultuados, comemorados. Caboclos e boiadeiros, entidades "paralelas" também costumam ser assentados (fixados) e recebem festas anualmente. Como os terreiros em geral têm muitos filhos, imagine-se a quantidade de festas em potencial.
Em São Paulo, excetuando-se a época da Quaresma, pode-se esperar assistir, nos finais de semana, a várias festas de candomblé, havendo ainda a possibilidade de escolha entre as diversas "nações" (ritos originários de diferentes regiões e etnias africanas, como ketu, fon, angola, jeje, etc.), terreiros, bairros e modalidades de festas (Festa de Saída de Iaô, Festa de Saída de Ogã, Festa de Saída de Ekede, Festa de Erê, Festa de Decá, Festa de Ogum, de Xangô etc.). A importância de se realizarem tantas festas é explicada pelos pais-de-santo Sidney de Ogum e Marcos de Obaluaiê:
"Tem candomblé que dá festa periodicamente a título de se mostrar, porque até no candomblé existe o que nós chamamos de propaganda; se você não mostrar o que é, um pouco, você não consegue atrair pessoas pro culto e ele se fecha, ele morre".
"A festa é onde a gente mostra a beleza, o que a gente sabe, os orixás da nossa casa".
Percebe-se, nestas palavras, uma das fortes razões de a festa ser realizada com tanta freqüência pelos terreiros: ela é uma espécie de "vitrine" da religião. É um modo de mostrar ao público a identidade do culto, muito mais ampla e complexa, mais bonita e lúdica do que o que possa parecer num contato com finalidades "instrumentais" com o culto, como é o caso da consulta ao jogo de búzios e da realização de ebós. A cena dos orixás vestidos com roupas brilhantes, com seus filás escondendo os rostos dos iniciados, é a cena da festa, freqüentemente vista em revistas, televisão, livros e discos. A festa mostra o que o grupo é. Nesse sentido a festa pode ser entendida como o "proselitismo" do candomblé.
Os terreiros que já contam com um determinado número de "filhos" (como são chamados os iniciados, pelos pais ou mães-de-santo) costumam estabelecer um calendário mais ou menos fixo de festas anuais e que pode ou não conter as festas particulares relacionadas com momentos da vida religiosa dos filhos da casa. Ou seja, no Ipetê de Oxum (uma festa especialmente dedicada à deusa Oxum), de um determinado terreiro, podem acontecer também, por exemplo, a saída de um iaô (iniciado) de Logum (orixá filho da deusa Oxum, no mito), de Oxum mesmo, ou de qualquer outro orixá (geralmente com alguma relação mítica com o orixá da festa), ou a entrega de um Decá (título de senioridade do candomblé, que o pai ou mãe de santo entrega ao iniciado após a obrigação de 7 anos).
Do calendário fixo geralmente constam apenas as festas oferecidas aos orixás considerados mais importantes para o grupo de um determinado terreiro. Quando não há um "motivo" específico para uma festa, a reunião visando à possessão dos iniciados pelos orixás recebe o nome de "toque". Ainda com este nome o ritual guarda suas semelhanças com a festa pois, como o nome indica, trata-se de uma cerimônia essencialmente musical. Canta-se e dança-se para cada orixá que então incorporam seus filhos, dançam e vão embora de volta à "África", encerrando com sua partida a cerimônia. Neste tipo de ritual não são usadas roupas especiais quando os orixás "viram" (incorporam), nem há a comida votiva dos deuses oferecida à assistência ao final das festas e que recebe o nome de ajeun. O toque pode ser entendido, portanto, como um chamado, uma oração, pedindo aos orixás que se façam presentes junto a seus filhos, trazendo seu axé (força vital) para fortalecê-los.
Os terreiros que seguem um calendário de festas geralmente o organizam do seguinte modo:
Em janeiro costumam acontecer muitas festas de caboclos, especialmente na época das festas para São Sebastião, quando também acontecem muitas festas para Oxossi. Em fevereiro, antes do Carnaval, acontecem muitas festas para Ogum (por ser o início do ano e Ogum o orixá que abre os caminhos, as portas, os períodos), o que também pode acontecer em abril (dia de São Jorge, santo em quem é sincretizado no estado de São Paulo) ou junho, quando ele é sincretizado em Santo Antonio. Por ocasião do início da Quaresma, faz-se o Lorogun (Festa de Oxaguiã), uma festa que encerra as atividades do terreiro até a Páscoa . Em junho são freqüentes as festas de Xangô (que é sincretizado, em muitos terreiros, com São João ou mesmo com São Pedro), geralmente realizadas junto a fogueiras. Em agosto é impressionante a quantidade de Olubajés, as festas de Obaluaiê (parece que ninguém se arrisca a desagradar o temido deus das doenças, sincretizado ora em São Lázaro, ora em São Roque). Em setembro acontecem centenas de festas de Erês (ou Ibeji, as entidades infantis do candomblé) em razão do sincretismo com São Cosme e São Damião, comemorados a 27 de setembro. Também em setembro ocorrem as tradicionais festas das Águas de Oxalá (um ciclo de três festas que se realizam durante três semanas), que também podem acontecer em dezembro, seguindo-se o preceito do candomblé de que tudo começa a partir de Exu e termina com Oxalá (inclusive o ano) que é sincretizado com Cristo. As festas dos orixás femininos, conhecidos como iabás, como o Ipetê de Oxum e o Acarajé de Iansã, costumam acontecer em dezembro devido ao sincretismo mas, a princípio, podem ocorrer em qualquer época do ano. As festas de Iemanjá, entretanto, raramente ocorrem fora dos meses de dezembro ou fevereiro, acompanhando o calendário das festas católicas de Nossa Senhora da Conceição ou da Candelária, ou ainda de Nossa Senhora dos Navegantes, nas quais é sincretizada a deusa das águas.
Além desse calendário, praticamente consensual entre o povo-de-santo, as festas podem ter motivos variados, como iniciações, obrigações, aniversário do santo (geralmente se faz esse tipo de comemoração só depois dos 7 anos de feitura), festa do santo patrono da casa, festa do orixá do pai-de-santo, festa oferecida a algum orixá por motivo de "agrado" ou agradecimento por alguma coisa, festa para os erês da casa, para os caboclos ou boiadeiros, enfim os motivos para a realização de uma festa são diversos e não faltam. Ultimamente algumas casas têm feito até festas de casamento no candomblé no próprio barracão, após a cerimônia religiosa. Estas festas não são previstas no calendário e tanto podem acontecer nos períodos entre aquelas que nele constam, como serem inseridas, de acordo com as possibilidades e/ou conveniência do terreiro, nas próprias festas constantes do calendário, uma vez que a preparação e realização de uma festa de candomblé, por mais simples que seja, exige recursos financeiros e humanos bastante consideráveis.
Preparando a Festa
Uma festa começa a ser preparada muito antes do dia marcado para sua realização, seja ela uma festa simples ou uma Festa de Saída (consideradas as de Iaô e de Decá as mais trabalhosas e caras de todas as festas). É preciso tempo para que sejam tomadas uma série de providências para conseguir recursos a fim de satisfazer os anseios de todos em relação ao acontecimento.
A perspectiva da festa mobiliza uma série de recursos econômicos e simbólicos, dentro e fora do terreiro, além de recursos humanos. Uma vez que se tenha o motivo, começa a preparação.
A mãe ou o pai-de-santo reúne o grupo e comunica que vai haver festa e que todos devem colaborar com trabalho, oferendas, dinheiro ou tudo isso ao mesmo tempo. Nessas ocasiões, geralmente, o pai-de-santo aproveita para avaliar a última festa mais uma vez e lembrar os "erros" cometidos, os problemas acontecidos e as soluções que foram dadas a eles.
Se o terreiro tiver condições para tanto, manda-se imprimir convites com data, motivo, endereço e até o traje adequado para a ocasião. Se o terreiro não tiver condições financeiras para isso, será mobilizada a rede de informação do povo-de-santo, que é eficientíssima. Essa rede passa por diversos ambientes freqüentados pelos adeptos do candomblé, especialmente as festas de outros terreiros, as lojas de artigos religiosos, escolas de samba, boates gays, além de mil telefonemas e, principalmente, através das relações de parentesco de santo e de nação.
Tendo sido reunidos os recursos para a compra dos artigos necessários, todos os membros do terreiro devem estabelecer uma espécie de "escala de serviço" na casa, pois sempre há necessidade de gente para dar conta de todos os detalhes da preparação da festa e que são muitos. Até mesmo os simpatizantes (clientes dos jogos de búzios e visitas presentes) são chamados a contribuir.
Para que a festa possa ser realizada é necessário que os adeptos se organizem também fora do terreiro. Como é preciso (e importante!) ajudar no trabalho da casa-de-santo, muita gente trabalha horas extras no emprego, não só para conseguir mais dinheiro e participar da festa, comprar uma roupa nova para o seu orixá, oferecer-lhe algo, mas também para ter tempo livre que possa ser usado nas tarefas do terreiro. É comum que pessoas que trabalhem em hospitais, por exemplo, "dobrem" seus plantões para ter um dia ou uma noite livres para dedicar-se aos afazeres da "roça". Há empregadas domésticas que abandonam o emprego para ser a "mãe-criadeira" de um iaô; diaristas que faltam ao serviço (com o risco de perderem o trabalho) apenas para poderem ajudar na "comida do santo". No caso dos iaôs, é costume aproveitarem os períodos de férias (do trabalho ou escolares) e se recolherem para a iniciação. Quem não trabalha "fora" como algumas donas-de-casa, deve providenciar quem cuide de seus filhos, maridos, suas casas. Quando não conseguem isto, elas levam seus filhos para o terreiro. Sempre se dá um jeito. Em época de "obrigação" nos terreiros é muito comum ver-se crianças nos terreiros brincando, com pedrinhas, de "jogar búzios". Elas brincam também de "dar dobale", "virar no santo", "fazer ebós" e outras coisas que vêem nesta convivência obrigatória com a prática do candomblé, ao acompanharem seus pais .
Com antecedência, deve-se lavar, passar e engomar as roupas de festa (sete saiotes para cada mulher que dance na roda-de-santo, são lavados, passados e engomados!), consertar as roupas dos orixás, que a cada festa perdem lantejoulas, pedras, rasgam-se devido ao movimento nas danças. É preciso polir as ferramentas (insígnias) dos orixás, as pulseiras e os adjás dos ebomis (que geralmente são confeccionados em latão ou zinco niquelado e escurecem com o tempo), pois eles devem imitar o brilho do ouro, da prata e do cobre, metais favoritos dos orixás. Além disso, devem ser respeitados tabus alimentares e sexuais; é preciso correr a cidade em busca de avícolas onde possam ser encontrados os animais caracteristicamente preferidos pelo orixá comemorado (e que não podem ter nenhum tipo de defeito físico), ao qual serão sacrificados - será preciso que haja um carro à disposição do terreiro para todo este circuito de compras - e depois sai-se à procura das folhas que comporão o amaci (banho de "limpeza") dos filhos-de-santo antes da festa. Se a casa tiver seus próprios alabês (ogãs tocadores de atabaques), muito bem. Se não, eles deverão ser contratados, pois uma festa não pode prescindir da música, já que é ela que "traz" os orixás ao mundo dos homens. É costume dizer, entre os adeptos, que "sem alabê não tem candomblé".
Às vésperas da festa os animais são sacrificados e as "comidas secas" (são chamadas assim todas as "comidas-de-santo" que não sejam animais sacrificados) oferecidas aos orixás. Essas comidas são preparadas pela iabassê da casa (cozinheira que prepara as comidas dos santos e que conhece os preceitos e "temperos" do gosto de cada orixá), auxiliada por ekedes e iaôs. Cada orixá come um prato específico, preparado de modo peculiar. Assim, Exu, como comida seca recebe farofa, dendê e pinga (no padê, no dia da festa). Ogum deve comer pelo menos um prato de feijão preto com cebolas; Oxossi receberá milho com mel e coco; Ossaim, feijão fradinho com coco e mel; Obaluaê um prato de pipocas; Xangô, um prato de quiabos (amalá); Oxumarê batatas doces ou amendoins cozidos com casca e mel. Oxum come ovos cozidos e omolucum (cuja base é o feijão fradinho). Logun-Edé se satisfaz com ovos cozidos, camarões, milho e coco; Iansã adora acarajés. Nanã, a deusa da lama e dos abismos pede folhas de mostarda com arroz; Obá divide com Xangô o gosto pelos quiabos enquanto Ewá gosta de frutas. O deus vegetal, Iroco, come verduras e cebolas, enquanto Iemanjá come arroz com mel e manjar branco e Oxalá, o senhor da criação, agradece um modesto prato de arroz branco, sem tempero e algum inhame pilado e cozido.
Todo este cardápio depende, entretanto, do que se chama de "qualidade" do orixá , que são avatares, caminhos do orixá e que são "partes ou segmentos da sua própria biografia mítica, ou representações de locais em que nessa forma foi ou é cultuado" (Prandi, 1989:157). Sendo assim, uma Iemanjá Ogunté, por exemplo, comerá arroz com feijão preto (devido às suas ligações com orixá Ogum) em lugar do simples arroz; isto acontece com todos os orixás. Todas as comidas rituais são preparadas levando-se em consideração os preceitos de cada orixá. A pipoca de Obaluaiê (doburu), por exemplo, deve ser estourada na areia quente e não no óleo. Quem o faz não pode falar enquanto prepara, e assim por diante.
Além do orixá homenageado, também Exu recebe sacrifícios animais. Exu, aliás, sempre recebe homenagens, qualquer que seja o tipo de festa ou trabalho que se realize no terreiro. Raras são, no entanto, as festas de Exu no candomblé.
No caso das festas de iniciação, depois do sacrifício ritual a cozinha do terreiro fica cheia de pombos, frangos, galinhas d'angola etc. para serem depenados e suas vísceras (axés), devidamente separadas e preparadas, conforme a preferência dos orixás a que se destinam. Os "bichos de quatro pés" (que podem ser porcos, cabritos, carneiros, tartarugas, coelhos etc., conforme o orixá homenageado) são "pelados" e limpos pelos ogãs. É muito comum serem vistas, curtindo ao sol nas casas-de-santo ou mesmo na forma de pequenos "tapetes", as peles desses animais. É conferindo as peles na parede que o povo-de-santo sabe (e verifica) quais foram os animais sacrificados. É costume se contarem as peles e ver se elas são novas.
Depois de limpos os bichos, cozinham-se as carnes, separa-se o que cada orixá deseja e, no dia seguinte são preparadas as comidas que serão servidas à assistência da festa, no ajeun. É preciso lembrar que as mulheres que cozinham as comidas do santo não podem, sob nenhuma hipótese, estar menstruadas, o que também pode representar um problema para a casa, que precisa estar ciente das datas de menstruação de suas filhas antes de marcar qualquer obrigação a que estas devam estar presentes. Por este motivo a iabassê quase sempre é uma mulher que já esteja na menopausa, garantindo-lhe as condições necessárias ao pleno desempenho de suas funções.

sábado, 23 de maio de 2009

Do livro "O Fim do Mundo de Otto Friedrich - “A Peste Negra – 1347-1350 – Uma vasta e pavorosa solidão”.

O autor evidencia nesse capitulo a devastação proveniente da peste que matou cerca de 85.000 pessoas na Criméia. Segundo o autor, os tártaros responsabilizaram os genoveses pelo desastre, por serem transmissores da doença, no momento em que eram sitiados por eles (os tártaros). Os sintomas eram: bubões, nas virilhas e nas axilas, a febre, os escarros de sangue e, no máximo em uma semana, por vezes, a morte. Tal mortandade chegou à cidade dos genoveses. Khan, um governador tártaro, culpou-os pela peste que assolava seus soldados e, numa atitude de vingança, usou os corpos dos mortos como “balas” nas catapultas, que eram arremessados para dentro da cidade dos genoveses. Desesperados, os sobreviventes remaram pelo mar negro em direção à Constantinopla, levando a peste com eles. Relatos como o do imperador João VI Cantacuzeno foram deixados, mostrando o terrível desastre na região que culminou na morte da maior parte da população costeira do mundo. O autor ainda esboça relatos de que também na região da China de que dizia que treze milhões de pessoas haviam morrido, bem como relatos da Índia dada como despovoada e parte do Oriente Médio, por volta de 1346, ficaram cobertos de cadáveres. Apesar de certa dose de exagero, são considerados relatos factuais. Só por volta de 1894 é que se conseguiu identificar o bacilo da peste. “o homem subitamente derrubado por furúnculos e febre era, simplesmente, um homem derrubado pela vontade de Deus – ou, pior ainda, pela ira divina”. William Langland em Piers Plowman escreveu: “Deus está surdo hoje e não se digna ouvir-nos, /e as preces não têm o poder de a Peste deter”. Comparadamente, os relatos do livro de Gênesis e do Apocalipse eram tomados como precedentes teológicos para os acontecimentos mirabolantes que abalaram aqueles dias. Daí, percebe-se no texto de Oto que muitos fugiam “da ira de Deus” para regiões longínquas como para Messina, onde sua população hospitaleira aos genoveses, foi contagiada pela peste. Contaminados, os habitantes de Messina procuravam os padres para confessar seus pecados, mas nem esses os recebiam. Nas casas os cadáveres jaziam. “Quando a catástrofe atingiu seu clímax, os habitantes de Messina resolveram migrar”, levando a doença para regiões, uns vagando pelos campos, outros para a região de Catânia, que barraram a entrada de viajantes do norte. A súplica dos Messinianos era de que o Arcebispo Gerard Othos emprestasse as relíquias de Sta. Ágata, para que ocorresse a cura da epidemia. Após a recusa dos catanienses em deixar com que as relíquias saíssem da cidade, o arcebispo segue em direção a cidade dos messinianos, onde organiza uma procissão com os sobreviventes, recitando ladainhas em sua caminhada.

A morte estava em toda parte. Desde Veneza e Sicília até Túnis, Barcelona e a costa de Languedoc. Os cronistas narram a morte de 63.000 pessoas em Nápoles e de mais de 100.000 pessoas em Florença. Em Veneza, a baixa chegava a seiscentas por dia. Em Pisa perdeu quatro quintos e Verona, três quartos de seus habitantes. Apesar da contestação dos historiadores modernos quanto a essas cifras, os cronistas “fizeram o melhor que podiam para descrever um desastre de magnitude quase inimaginável”. Concluiu-se que cerca de 30% ou 25 milhões de pessoas morreram numa população de 80 milhões. “As estimativas doutas nas baixas no mundo inteiro são pouco mais do que palpites medievais; talvez 75 milhões de mortos, numa população total que talvez atingisse uns 500 milhões”. As pessoas acreditam ser “o fim do mundo”.

Diante de todos esses acontecimentos, muitos procuraram ter um comportamento de completa devoção em busca da salvação, enquanto que outros tomaram partido para a vida de orgias, ou perambulavam pelas ruas, ou de casa em casa, cometendo todos os tipos de pecados, comportando-se como bem entendiam.

Agora um fato importante chama a atenção do autor. A transferência do governo da igreja católica para a cidade de Avignon, impulsionada pela caótica situação em que se encontrava Roma. Uma cidade dominada por bandos rivais, completamente destruída a sua beleza, além de não oferecer nenhuma oportunidade de comércio, já não fornecia alimentos aos seus cidadãos. Com isso, a cidade de Avignon “cresceu com os burocratas papais e com os suplicantes peregrinos, os agiotas e as prostitutas”. O desrespeito as leis, a falta de saneamento básico para a população de quadriplicou o seu crescimento em relação a despovoada Roma, além das taxas impostas pela igreja como a “annate”, paga pelos cargos clericais, “expectative”, paga por cargos que ainda não estavam vagos, as pequenas taxas conhecidas como servitia communia, a servitia minuta, a visitationes ad limina, além da transmissão de terras e títulos pagas por famílias como a “d’Este”, eram justificadas como contribuição à igreja para a realização de uma nova cruzada para reconquistar a terra santa, a qual nunca aconteceu e todo o dinheiro “chovia em Avignon”. Clemente VI esbanjou em tudo o que os seus predecessores haviam acumulado, desde uma ampliação do palácio papal, até investimentos na caça (sua diversão predileta), na sua biblioteca pessoal, além de praticas sexuais com homens e mulheres jovens em seus aposentos, o que lhe deu como herança uma doença venérea causadora de sua morte. Outro feito de Clemente VI foi a compra da cidade de Avignon, pagando a rainha Joana de Nápoles a quantia de 80 mil florins.

Com a chegada da peste na cidade, além de causar um enorme choque nos europeus, pelo açoite de Deus atingindo com grande ímpeto a cidade do Vigário de Deus, quase duas mil mortes foram registradas só nos primeiros dias e, conforme os escritos de Louis de Beeringen, devastado metade de sua população. A partir daí Clemente toma uma série de medidas, entre elas encontram-se a absolvição plena de todos os que houvessem confessado e morrido pela peste. Outro fato marcante, nesta época, do surgimento da peste foi à atribuição a fenômenos espaciais (aos astros); até sua chegada a cidades era anunciada por eles.

Como a peste era transportada pelas rotas do comércio e pela ida de fiéis católicos a comemoração da festa de São João Batista, quase toda a população da cidade de Briston foi varrida. Mais não para por ai. Quase um milhão e meio de ingleses morreram nos anos de 1348 e 1349, conforme a crônica de Henry Knighton. Devastou a Alemanha. De Pádua e Verona, atravessou o passo de Brenner e, no verão de 1348, chegou aos Alpes da Baviera. Nos cemitérios das igrejas não eram mais permitidos enterrar os mortos. Assim, os corpos eram transportados às centenas para fora das cidades, num lugar chamado de “campo santo”, chegando a colocarem cinco mil cadáveres ali. O surgimento e a aparição de Santos eram constantes; uma que se destacou nesse tempo, foi a Virgem da Peste que chegou a ser vista sobrevoando a cidade em uma chama azul. A confusão era tão grande que muitos “privados de seu juízo, abandonavam a vida e renunciavam voluntariamente a todos os bens terrenos. Levavam seus tesouros para os mosteiros e igrejas, para depositá-los aos pés dos altares. Para os monges o dinheiro não tinha o menor atrativo, pois levava consigo a morte. Eles fecharam os portões, mas as pessoas atiravam dinheiro por cima dos muros dos mosteiros”.