quinta-feira, 17 de junho de 2010

POVO-DE-SANTO, POVO DE FESTA - A CENTRALIDADE DA FESTA DE CANDOMBLÉ COMO POTÊNCIA ESTRUTURANTE DA RELIGIÃO

Rita Amaral Antropóloga, PhD


Quem nunca teve oportunidade de ir a muitas festas de candomblé certamente sentirá alguma dificuldade para imaginar o que ela pode representar em termos da estruturação simbólica e social desta religião. Nem pode imaginar, também, a rede de significados e alianças que ela implica e, tampouco, o prazer estético que vai se desvendando desde o momento em que se ouve, ainda do lado de fora do terreiro, o som dos atabaques tocando para os deuses. Para que este artigo pudesse fazer sentido também para os que não sabem o que se passa numa festa de candomblé é que optei por descrever uma das 106 festas a que assisti durante a pesquisa de campo que realizei por 6 anos, como auxílio do CNPq e da FAPESP no candomblé paulista.É claro que a simples descrição não pode dar conta da emoção que envolve os acontecimentos, nem do profundo sentimento religioso com que os participantes encaram a festa. Mas pode servir de referência para a melhor compreensão da análise que faço, a seguir, da festa como fenômeno estrutural do candomblé; não só do ponto de vista da religião mas, principalmente, de seu papel na construção de identidades individuais e de manutenção da coesão das comunidades dos terreiros. E que ultrapassa a dimensão religiosa, espraiando-se pela vida cotidiana dos adeptos do candomblé, criando uma disposição durável (Geertz,1978) específica nos iniciados, delineando o que se pode chamar um estilo de vida (Bourdieu, 1983) do povo-de-santo. Disposição que se revela na cantiga que costuma abrir as festas, quando se chama Ogum, o deus da guerra, cantando: Awon xirê, Ogun!". "Vamos brincar, Ogun!"
Festa de Boiadeiro com Saída de Equede (São Paulo, 1988) "Neste dia, um quente 03 de Dezembro, chegamos ao terreiro aproximadamente às 19:30 hr. Como estávamos sob a vigência do horário de verão e não queríamos estar na estrada escura e sem iluminação, com longos trechos de buracos e curvas sinuosas (e cerca de um quilômetro de estrada de terra) durante a noite, preferimos chegar um pouco mais cedo e esperar na própria roça o início da festa, marcado para as 21 horas. Contudo, a festa, propriamente dita, só começou, realmente, às 24 horas em ponto. Como tínhamos que esperar, fomos visitando as dependências da roça e conversando com o pessoal da casa.
O Boiadeiro Laçador é a entidade mais querida na Casa de Wilson de Iemanjá, o pai-de-santo chefe desta casa (ou o "tata" como se diz no rito angola), também conhecido, entre o povo-de-santo, pela dijina de Zunzodoazambi. Sua roça (terreiro), situada em Parelheiros é uma das maiores e mais bonitas de São Paulo. Sua área construída tem cerca de 3.000m2, num terreno de 2 alqueires. Sendo uma espécie de "sítio", lá Wilson planta muitos tipos de legumes, frutas, verduras e também cria animais como cabras, galinhas, porcos e até bois. Nesta área, foram construídas casas separadas para Exu, Ogum, Xangô, Iansã, Balé (eguns ) e, chamando a atenção de quem chega, uma especialíssima casa para o boiadeiro Laçador, feita de taipa, coberta de sapé, circular, no estilo das malocas indígenas. Esta casa foi construída por descendentes de uma tribo indígena que habita o bairro do Cipó. Estes índios fazem a manutenção temporária da cobertura da casa do boiadeiro, que deve ser refeita de tempos em tempos por causa das chuvas. O chão desta "maloca" é de terra batida e, nos dias de festa como este, coberto por um verdadeiro tapete de folhas de "são gonçalinho", uma erva extremamente perfumada, com um cheiro quembra o do cravo-da-índia e que, sendo pisada durante as danças ou pelo simples andar, espalha seu perfume de modo marcante. No dia da festa do boiadeiro vêem-se, em frente à casa deste, hasteadas, duas bandeiras: a do Brasil, porque o boiadeiro representa a parte brasileira do culto, incorporada pelo rito angola, e a bandeira de Minas Gerais, terra do Boiadeiro Laçador que, segundo Wilson, é "originário da cidade de Diamantina".
Dentro da casa do boiadeiro, pendurados no mastro central, vêem-se o chapéu do boiadeiro, seu laço, suas esporas e boleadeiras; uma cadeira coberta por um grande pedaço de couro de boi e seu assentamento , colorido, cercado por alguidares cheios de frutas, oferendas feitas pelos filhos-de-santo da casa. Junto à parede ficam os três atabaques do culto aos caboclos, pois os que tocam para os orixás (inkices, no angola) não tocam para os caboclos, e vice-versa.
O barracão do terreiro também é muito grande, construído em duas águas, retangular e dividido ao meio, no sentido do comprimento. Separada do espaço onde acontece a "roda-de-santo" por uma mureta que forma um "patamar" sobre o qual ficam os alabês e os atabaques, vê-se uma grande mesa de banquete feita em alvenaria, forrada, nos dias de festa, por esplêndidas toalhas brancas bordadas pelas filhas-de-santo. Esta mesa recebe, durante o ajeun, as personalidades mais importantes do culto. Mesmo assim, poucos são os que ficam sentados à mesa. A maioria prefere comer com o prato na mão, ao ar livre, "batendo papo" mais informalmente. No centro desta imensa mesa sempre existe um enorme arranjo de flores.
Nesta festa o boiadeiro havia recebido, como oferenda, um boi "calçado" por quatro frangos para cada pé do boi, num total de 16 frangos. A carne deste boi seria servida no ajeun, em forma de churrasco, acompanhada de muito chope. Além do caboclo, comeu Exu, evidentemente..
A decoração do barracão foi idealizada por tata Wilson e realizada com a ajuda dos filhos-de-santo. As colunas que separam as duas águas do teto estavam totalmente cobertas por folhas de palmeira, sobre as quais foram colocados grandes arranjos de frutas (comida dos caboclos), entre elas pequenos mamões, melões, goiabas, bananas, laranjas etc. que, além de um efeito muito colorido ainda traziam um delicioso perfume ao ambiente. Nas paredes brancas, muitas folhas e algumas bonequinhas feitas de cabacinhas pintadas. Grandes cascos de tartaruga d'água (cinco, gigantes) ornamentavam as paredes fazendo alusão a Zazi, um dos orixás do pai de santo). Na parede do fundo, onde ficam a cadeira do tata e da mãe-pequena, uma pintura de Iemanjá Ogunté, vestida de verde, com os ombros nus e o rosto coberto pelo filá que desce do adê (coroa). Um arranjo de flores brancas e amarelas ao lado da cadeira do tata completa a decoração. Sobre a mesa enorme, o arranjo também é composto por várias frutas e flores.
Um dos motivos do atraso para o início da festa era o mesmo que acontece em todos os candomblés e em todas as festas: o atraso dos alabês. O atraso de certas pessoas, fundamentais ao andamento das festas em que o pai-de-santo entra em transe (como esta) e deve portanto entregar o comando da festa a outra pessoa, pode retardar o início da festa. Para completar a lista de razões para o atraso, neste dia, a bomba d'água da casa havia quebrado e os filhos-de-santo precisaram fazer mil "acrobacias" para lavar a louça, limpar tudo, e tomar os banhos rituais (maiongas). Outro problema atormentava os filhos da casa: não havia a serpentina necessária para que fossem servidos os 160 litros de chope que acompanhariam o churrasco do boiadeiro Laçador. Todos se movimentavam tentando consegui-la, o que foi ficando cada vez mais difícil à medida que o tempo passava. Telefonou-se para várias pessoas. Por fim, já bem tarde, foi possível alugar uma por 15 mil cruzados que todos acharam caríssimo mas, uma vez que não haveria outra solução, às 11 horas da noite, mais uma cotização foi feita.
Enquanto isso, era possível observar as filhas-de-santo surgindo, aos poucos, impecáveis em suas "baianas" (roupa de festa, com muitos saiotes, pano da costa, camisu etc.) alvíssimas ou multicoloridas. As roupas coloridas sempre faziam alusão ao orixá da pessoa ou a seus caboclos. As rendas também, através de seus desenhos (muito observados pelo povo-de-santo), homenageavam os orixás de cabeça da filha-de-santo. Assim, rendas brancas com pequenas folhas prateadas eram usadas por uma filha de Catendê (deus das folhas); rendas com estrelas e flores para as filhas de Oxum. Leques para as filhas de Iansã, luas para as de Iemanjá e muito richelieu (bordado vazado) para todas e também para os filhos-de-santo, em abadãs e batas, ou em barras de calçolões. Os ojá-ori (panos que cobrem a cabeça) são cuidadosamente amarrados, terminando em "abas". As roupas têm muito brilho, os tecidos são cuidadosamente escolhidos. Muitas pulseiras nos braços das mulheres e dos homens. Muitas contas, muitos anéis de prata, de ouro, de búzios (o povo-de-santo preza muito este tipo de adorno e usa, também fora do terreiro, muitas pulseiras, muitos anéis, muitos colares). Tudo repleto de significado até o último detalhe: a cor, a forma, a quantidade, os números. As mulheres parecem flores, tantos são os saiotes engomados sob as delicadas saias em tecido de renda branca ou colorida, musselina, seda, brocado, lamê, cetim ou algodões estampados em cores vivas. Nos pés, infalivelmente, chinelinhos sem salto (que os iaôs deixam do lado de fora do barracão) brancos. As ebomis (e alguns ebomis homens também) usam um pouco mais de salto. Curiosamente, esses chinelos ou "tamanquinhos" parecem ser sempre um número menor que o pé, pois os calcanhares geralmente "sobram" cerca de 1 centímetro para fora deles. Alguns dizem que isso proporciona uma certa graça à dança. Uma impressão de leveza, de delicadeza.
As ekedes providenciam os últimos detalhes, carregando sobre os ombros cuidadosa e majestosamente suas "toalhas" (símbolo do status e do poder da ekede de "desvirar o santo", mandá-lo embora, o que ela faz colocando essa toalha sobre a cabeça do filho-de-santo em transe e dizendo palavras rituais). Enquanto isso os alabês chegam e começam a afinar os couros dos atabaques ao mesmo tempo em que esquentam as mãos, porque a festa é longa. Logo chegam outros alabês, de outras casas, que revezarão com os "oficiais", uma vez que no rito angola, sendo os atabaques tocados com as mãos (no ketu toca-se com varinhas chamadas aguidavis), o cansaço é bem maior e tocar a noite inteira (cerca de 6 horas, em média) fere as palmas de suas mãos. Eu mesma já vi, apesar do revezamento, as mãos dos alabês sangrarem.
Finalmente ouve-se o som ininterrupto dos adjás, sinal de que o toque vai começar. Tata Wilson vem à frente, todo vestido de branco, com um único ombro de fora, à moda africana, usando contas escuras, acinzentadas. Como o convite dizia que haveria também uma saída de ekede, poderia ser homenagem ao santo dela. Wilson traz nas mãos um adjá dourado de 4 campânulas. As ekedes (e outros ebomis) entram a seguir, todas com suas toalhas e brajás, símbolos da senioridade. Os iaôs vêm em "barcos", ordenados também conforme seu tempo de iniciação. Todos usam seus erindiloguns (colares com 16 fios de contas, soltos, que serão presos em gomos aos 7 anos de iniciação) e mocãs, além de estarem descalços, enquanto os ebomis usam chinelos ou tamancos.
Começa o padê, quando se canta louvando Exu e lhe são oferecidos farinha, água e uma vela. Canta-se para Bombogira, Aluvaiá e outros Exus de angola e alguns de ketu. É o próprio pai-de-santo que, acompanhado pela mãe-pequena, despacha Exu, para que ele vá buscar os orixás. E também para que ele não perturbe a harmonia que se deseja que haja na festa. Por isso ele deve comer primeiro.
Despachado Exu, tata Wilson entra novamente, com a mãe-pequena e as ekedes, sob o dobrar dos couros (deferência às autoridades do culto) que devem dobrar sempre que um ebomi entra no barracão, interrompendo o toque a qualquer momento. Ao som de uma cantiga específica, Wilson acende um cartucho de pólvora e uma nuvem de fumaça branca se espalha no ar. Logo em seguida são cantadas algumas cantigas para a pemba (pó sagrado) e Wilson sopra a pemba em pó (ou efun, no ketu) por todo o barracão. Em sinal de deferência ele oferece a seu irmão de santo, Guiamazi, um pouco de pó para que este sopre. Enquanto isso os iaôs, agachados, e os ebomis, em pé, aguardam cantando:
"O Kipembê, o kipembe ewiza kassanje ewiza d'angola o kipembê samba d'angola"

Só então começa o xirê, que é uma estrutura seqüencial de cantigas para todos os deuses cultuados na casa ou pela nação, indo de Exu a Oxalá. Como sempre, ele começa por cantigas para Ogun seguido por Oxossi e por Catendê (uma divindade do rito angola), depois por Obaluaê, Tempo (outra divindade do rito angola), Nanã, Oxum, Logun-Edé, Xangô, Iemanjá, Ewá, Obá, Oxumarê, Iemanjá e Oxalá.
Quando se toca e canta para determinadas qualidades dos orixás (identificadas pelas cantigas) os filhos destes entram em transe ("viram") e acontece uma coisa interessante: viram também todos os seus irmãos de barco. Ao se cantar para o orixá da jibonã (mãe-criadeira) , viram todos aqueles que foram criados por ela. Ao se cantar para os orixás do pai-de-santo, os filhos todos viram. Ao se cantar para seus próprios juntós, estes viram. Se o orixá do pai-de-santo vira, todos os orixás da casa (mesmo os dos ebomis), viram junto. Com todos esses momentos de transe seria impossível retirar todos os orixás para desvirarem no roncó (pois Wilson já tinha, nessa época, cerca de 70 filhos-de-santo). Assim, as várias ekedes (10 nesse dia, em que também estava sendo confirmada mais uma) desviram os santos no barracão mesmo, através do procedimento já descrito. Apenas o santo do pai-de-santo é levado para desvirar no quarto de santo. Fora isso, os iaôs só são retirados virados, do barracão, se forem vestir seu santo para a dança ritual.
Depois de se cantar para Tempo (cerca de 3 a 5 cantigas foram cantadas para cada orixá, neste dia), os atabaques páram e ouve-se a cantiga tipicamente angola:
"Toté, toté de maiongá ô maiongombê Toté, toté de maiongá"

Com essa cantiga, entra no barracão, coberta por um alá (espécie de dossel), a ekede de Nanã, trazida pela mão de Wilson, que toca o adjá. Ela vem com roupas totalmente brancas (tipo baiana) e com a cabeça totalmente depilada e pintada de branco. Dá uma volta no barracão, saudando os atabaques e o ariaxé e sai, sempre sob o alá, que é segurado por ebomis. Depois disso, o toque continua até as cantigas de Iansã, quando tata Wilson se dirige a seu irmão de santo, tata Guiamazi, e lhe põe nas mãos o adjá, entregando-lhe, com este gesto, a condução da festa. Os filhos-de-santo agacharam-se e continuaram cantando. Wilson e Guiamazi dançam em torno do ariaxé (ponto central do barracão) e Guiamazi agita fortemente o adjá sobre a cabeça de Wilson, enquanto todos cantam para Iansã, até que ela incorpora seu filho. Iansã é o terceiro orixá de tata Wilson. Seu transe é bonito, discreto. Todos os filhos viraram juntos, o que é um espetáculo à parte, pois os orixás gritam seus ilás criando um som único, que só pode ser ouvido num candomblé e quando vira o pai-de-santo. Enquanto Iansã saúda o ariaxé e os atabaques, as ekedes desviram os filhos-de-santo. Depois, Iansã, que veio para dar o nome da Nanã da ekede, é retirada para vestir suas roupas rituais, roupas que o orixá só veste em dias de festa. Quando Iansã sai, é feito um pequeno intervalo e todos saem do barracão (exceto uma parte da assistência, que teme perder o lugar nas cadeiras uma vez que muita gente foi chegando e já havia quase duzentas pessoas assistindo à festa, muitas delas em pé) para tomar ar fresco, fumar, comentar a primeira parte da festa, conversar com amigos, paquerar, fazer perguntas etc. Pergunta-se pelos que não vieram. Geralmente estão envolvidos com a produção de outras festas, filhos "recolhidos" etc. Comentam-se outras festas. Fala-se de qualidades de orixás, como se vestem, o que comem, relembram-se momentos da própria iniciação. Os mais íntimos vão até a cozinha buscar um cafezinho, que a noite já é alta. O céu estrelado, na noite de verão, no meio do mato, onde é possível ouvir cigarras e ver vagalumes, cria uma atmosfera de misticismo e magia. As cadeiras brancas em torno das pequenas palmeiras, espalhadas pelo grande terreiro, são ocupadas para bate-papos informais enquanto se fuma (o que não pode ser feito dentro do barracão). As ekedes visitantes lembram sua iniciação. Comentam a dureza da religião. Alguns, ao ouvirem pedaços de conversa, trocam olhares debochados e maliciosos.
Ouve-se novamente o esquentar dos atabaques, sinal de que o toque vai recomeçar. Todos correm para seus lugares. Algumas pessoas da casa, contudo, já não voltam para a festa, pois devem começar a preparar as coisas para o ajeun (refeição ritual) que, neste dia, sendo churrasco, compreendia acender o fogo da churrasqueira, preparar as carnes, abrir os pães, preparar o barril de chope, os copos etc.
No barracão, Iansã, a deusa dos ventos e das tempestades, deusa do fogo e da sensualidade, entra toda vestida de vermelho, trazendo um maço de flores num braço e um grande leque branco na outra. Ela traz também, de braços dados, a ekede de Nanã. Agora a ekede vem vestida com suas roupas próprias: o ojá na cintura, a cabeça coberta por outro ojá, os brajás e todos os signos que indicam a senioridade, especialmente a toalha. A ekede dançou muito com Iansã as cantigas que lhe são dedicadas, cumprindo assim, já neste momento, uma das funções da ekede, que é a de dançar com o orixá. Ela também secou, com sua toalha, o suor do rosto de Wilson, para que, escorrendo, não perturbasse a dança de Iansã. Depois de algum tempo desta dança, Guiamazi parou o toque e pediu à deusa que dissesse, para que todos pudessem ouvir, pela primeira e última vez na vida da ekede, o nome da Nanã que havia sido iniciada. Este é um momento de grande expectativa, pois os atabaques páram de tocar e apenas os adjás são ouvidos. Iansã gira em torno de si mesma e, num grito rápido, diz o nome da Nanã. Todos os filhos entram em transe e algumas pessoas de fora também. Novamente o som dos ilás, todos juntos, pôde ser ouvido. Os atabaques recomeçam a tocar num ritmo frenético. As ekedes desviram os filhos-de-santo e Iansã, depois de dançar um pouco mais, saúda novamente os atabaques, o ariaxé e finalmente entrega as flores que trouxera nos braços para Guiamazi, em sinal de homenagem e respeito. Depois disso se retira, deixando a ekede no barracão, dançando com as outras ekedes (enquanto isso, os iaôs permanecem agachados, cantando apenas) cantigas que fazem alusão ao cargo por ela recebido e compartilhado pelas demais:

"Ê, ê, ekede zinguê ekede zingá Ê, ê, ekede kissangá"

Depois que a roda de ekedes termina suas cantigas, o toque pára e "vira para caboclo ", através de uma cantiga própria:

"Sequecê di quando andalunda Sequecê di quando eu andá..."
Como o número de convidados é muito grande, em vez de todos se dirigirem à casa do Boiadeiro Laçador, o homenageado, são trazidos para o barracão os atabaques que estavam em sua casa. Tata Wilson volta, dança um pouco as cantigas de caboclo, juntamente com os filhos-de-santo e vira no boiadeiro Laçador. No mesmo momento os caboclos de todos os filhos-de-santo viram também. Todos são levados para vestir suas roupas rituais e segue-se mais um intervalo.
O clima começa a esfriar e, assim, fica difícil permanecer do lado de fora da casa. A região é fria e, na madrugada, ainda mais, apesar do verão. Do lado de fora vêem-se os filhos-de-santo e as ekedes correndo de lá pra cá, com roupas e coisas de todo tipo, a pedido dos caboclos.
Os atabaques recomeçam. Voltamos rapidamente para dentro. Guiamazi grita:
"Xetu marrumba xetu!"

E ao som de "Toté, toté de maiongá" entra no barracão o boiadeiro Laçador. Sua figura é muito bonita, pois tata Wilson é um mulato forte, alto, de ombros largos e rosto expressivo que, vestido totalmente de branco, com atacans que deixam os ombros de fora (nas bordas dos laços dos atacans há um acabamento feito com uma tirinha de pele de onça), um grande chapéu de vaqueiro em couro branco e o inseparável laço, dá a este boiadeiro uma imagem de força, coragem e brasilidade carismática. Ele entra no barracão dançando e, aproximando-se dos atabaques pára e canta sua "ladainha":
"Boiadeiro, prenda seu gado não deixe beber dessa fonte eu venho de muito longe atravessei sete montes.
Quando atravessei o rio Eu vi meu gado na fonte Sou Laçador, senhor do sertão No meu cavalo, trago laço na mão".

Depois disso ele canta mais algumas cantigas de caboclo e dança. Sua dança é vibrante. As cantigas empolgam a assistência, que canta junto, talvez porque agora ela entenda o significado das palavras, o que não acontece com as cantigas em língua banto, pois diferentemente do que acontece nos toques para orixás e inkices, os caboclos cantam em português, com algumas poucas palavras em banto ou tupi. Entram, depois disso, os outros caboclos da casa. Todos se vestem do mesmo modo que o boiadeiro Laçador mas, evidentemente, com cores diferentes, e em cetim. Eles trazem cordões de pano retorcido ao redor da testa e apenas um deles, sendo um caboclo "de pena" (índio) traz uma pena, presa numa fita, atrás da cabeça. Nenhum outro usa chapéu de vaqueiro, também. As cores de suas roupas variam em tons de verde e azul escuro, com detalhes em amarelo, branco e vermelho. Como alguns caboclos que desviraram não tivessem voltado a virar para serem vestidos (os de alguns ebomis que ajudaram a vestir os outros caboclos entre eles), Guiamazi canta uma cantiga que geralmente faz com que os caboclos venham:
"Venha ver sua aldeia..."
Como alguns caboclos insistem em não vir, cantou a cantiga que é considerada "infalível" para chama-los:
"Ainda tem caboclo debaixo da samambaia..."
Todos os caboclos "viram" e os "retardatários" também são levados para vestir. Cada um deles, ao chegar no barracão, canta sua "ladainha", uma cantiga relacionada com seu mito e que é particular de cada caboclo.
Depois de dançarem e cantarem bastante, os caboclos fumaram charutos, beberam seu vinho (a jurema) e o ofereceram aos presentes e, principalmente, deram conselhos a todos. Alguns caboclos foram para fora do barracão, onde o churrasco já começava a ser assado. Como eu permanecesse no barracão com um amigo,, observando a deliciosa dança dos caboclos, um deles, o "seu Gentileiro", veio conversar comigo. Sendo um caboclo de um filho de Oxum, seus conselhos eram sobre amor. Saí, então, para ver o que acontecia lá fora, enquanto o boiadeiro Laçador se retirou para sua casa, onde recebeu o cumprimento das pessoas, conversou e deu conselhos. Formou-se uma fila para isto. Já se comia o churrasco e tomava o chope, ao mesmo tempo em que se conversava com os caboclos como se fossem velhos amigos. Um caboclo de um filho de Oxóssi, "seu Caçador", dirigiu-se a mim. Deu-me conselhos sobre o trabalho e a saúde e, depois de apagar a brasa de seu charuto sob a sola do pé descalço, cortou um pedaço e me deu, para que eu usasse como proteção. Depois disse que sabia que eu tinha um grande amigo que não estava ali e que eu havia pensado nele naquele momento (e devo dizer: pensei mesmo) e ele estava mandando para este amigo o outro pedaço do charuto. Quando olhei novamente, os caboclos estavam em toda parte, dentro e fora do barracão, dando consultas, indicando remédios, dando conselhos.
Num certo momento, alguns caboclos voltaram ao barracão para dançar. O clima foi se descontraindo e do modo grave e sacral como começou, passou a um modo descontraído, pois os caboclos chamaram as pessoas da assistência e demais convidados para dançar com eles. Uma das danças consistia em pular sobre um pé e outro, ao ritmo dos atabaques, sobre um ojá torcido, estirado no chão, sem pisar nele. Quem pisa cai fora e o caboclo chama outra pessoa. Os caboclos jamais pisam no ojá. A alegria é contagiante com a torcida que se forma. Os alabês buscam na memória mais e mais cantigas. Os caboclos sabem muitas. Aos poucos os caboclos vão se retirando e são os homens que começam a cantar suas músicas profanas, as cantigas de "sotaque", maliciosas e provocativas, dando início a uma deliciosa roda-de-samba que vai até o dia clariar. As cantigas de "sotaque" têm letras como estas:
provocação:
"Aqui nesta casa não tem homem Que não seja meu amigo Os homem dorme com homem As mulher deles comigo"
resposta:(insinuando que a pessoa deve se "retirar")
"Fulano quando for dê Lembranças a quem for de lá Corre, viado, Caçador vem te pegá!"
Há ainda outras cantigas, cuja finalidade é a insinuação ou simplesmente brincar maliciosamente:
"Aqui fizeram efó Me chamaram pra comer O efó saiu mal feito Eu quero efó dê no que dê"
"Se na minha roça Você não acredita Encosta mais perto Moça bonita"
"É difícil Conseguir o teu amor É difícil Me dê logo, por favor"
Ri-se muito dessas brincadeiras cantadas que se assemelham aos desafios nordestinos. Do sotaque, passa-se à ao samba-de-roda e à roda-de-samba, com músicas populares, geralmente com sambas de Clara Nunes, Martinho da Vila e Zeca Pagodinho e outros, que geralmente mencionam o candomblé e a umbanda em suas músicas, e que só acaba quando o dia amanhece e o sono chega.
oOo
Desde os primeiros estudos, os autores que investigaram os cultos afro-brasileiros nas diferentes regiões do país, como o candomblé baiano, o xangô pernambucano, o tambor-de-mina maranhense, o batuque gaúcho e a macumba carioca, constataram a realização de festas onde os grupos religiosos se reuniam para louvar seus deuses, que nestas ocasiões possuíam em transe aqueles que para eles eram iniciados. A respeito do candomblé, Nina Rodrigues, no final do século passado, afirmava:
"Chamam-se de candomblés as grandes festas públicas do culto iorubano, qualquer que seja a sua causa" (Rodrigues, 1935:141).
Mais tarde, também Arthur Ramos diria, a respeito do termo candomblé:
"As denominações de candomblés, macumbas, catimbós (...) que inicialmente designavam os festejos fetichistas, por extensão passaram a significar os próprios lugares ou centros onde se realizam as ceremônias. É nos terreiros que são (...) celebrados os cultos comuns e as grandes festas annuaes (candomblés propriamente ditos), afora outras festas profanas chamadas pelos negros bahianos de afochés. É nos afochés que os paes-de-santo 'brincam' com ídolos, cuja tendência à assimilação com os próprios santos é cada vez maior" (Ramos, 1934:42).
Em 1948, Edison Carneiro observava que o termo passara a designar ainda mais: "O lugar em que os negros realizam as suas características festas religiosas tem hoje o nome de candomblé, que antigamente significou somente as festas públicas anuais das seitas africanas" (Carneiro, 1948:43).
Fica evidente, nessas citações, o caráter de sinônimo que o termo candomblé assume para com o termo festa, desde os seus primórdios no Brasil. Mas isto não parece ter sido levado em conta na análise dos vários autores que escreveram sobre ele. Nos estudos sobre as religiões afro-brasileiras a festa foi entendida, geralmente, como o final comemorativo do processo de iniciação, pelo nascimento de um novo orixá, de uma "nova pessoa", ou então como o momento ritual em que os deuses incorporam seus filhos, no transe . Muitos diziam mesmo que o "verdadeiro candomblé não se vê publicamente". Com o olhar voltado para aspectos mais relacionados com os interesses científicos da época, tais como raça, sobrevivências culturais, psiquiatria e transe etc., foi impossível perceber que a festa, mais que um momento ritualizado do transe, é um elemento estrutural e estruturante do candomblé, pois em torno de sua realização é que se organizam várias dimensões da religião sendo, ao mesmo tempo, sua síntese. Ainda atualmente, pouca atenção tem sido dada aos aspectos mais públicos do culto, e no entanto eles se revelam de extrema importância para a compreensão da adesão crescente de vários contingentes populacionais ao candomblé e, também, das estratégias e políticas de crescimento destas religiões. Neste artigo, procuro dirigir o foco da observação para a relevância da festa como elemento estruturante do candomblé, que o explica e é por ele explicada, e que corresponde aos anseios de grupos e indivíduos por relações mais diretas e por espaços de manifestação da individualidade. Sua relevância para a compreensão da adesão ao candomblé é tanta, que escapa do espaço religioso, chegando a constituir os termos da estruturação de um gosto específico, pelos valores hedonicos, dionisíacos, delineando o que se pode chamar de estilo de vida do candomblé. O que é a festa de candomblé
Na festa de candomblé acontece o transe dos deuses em relação aos quais se constrói o pensamento religioso; na festa, a identidade do grupo se manifesta com a sua força total (canta-se na "língua da nação", veste-se de cor ou jeito tal, dança-se de dada maneira porque se é do ketu, do angola, do jeje, do fon etc.); é na festa que toda a organização hierárquica do candomblé se apresenta; enfim, é o momento em que tudo aquilo que o grupo é e acredita em termos de valores religiosos e estéticos se mostra com força total. Não é à toa, portanto, que o termo candomblé passou com o tempo, a designar a própria religião, depois de ter designado o lugar onde as festas eram realizadas. Arthur Ramos chega a apontar o candomblé saindo às ruas, numa versão profana, o afoxé, que até hoje existe e mantém estreitas ligações com esta religião.
Autores contemporâneos também relatam um sem-número de festas realizadas nos terreiros em que fazem suas pesquisas, nas diferentes regiões do Brasil . Tenham o nome e a origem que tiverem, as religiões afro-brasileiras realizam, sistematicamente, festas para seus deuses. E os cultos muitas vezes (e não por acaso) são denominados por termos que indicam aspectos da festa, como a música. É assim que temos o "batuque" no Rio Grande do Sul, em referência à música ritual, tocada por atabaques, ou o "tambor-de-mina" no Maranhão, referência não só ao aspecto musical do culto mas também diferenciando-o dos demais através do termo "mina", que indica a origem étnica do grupo fundante, o jeje.
As festas ocupam boa porção do tempo e consomem uma significativa parte do dinheiro do povo-de-santo, mantendo o grupo coeso em função de sua produção e realização. Ela ocupa uma posição especial na vida dos adeptos do candomblé que, dentro ou fora do terreiro, é marcada pela constante ocupação e preocupação com tais festas. A própria vida dentro do terreiro pode ser pensada como a permanente produção de festas pois inclui, através de aspectos dramatizados ou outros, sua continuidade pelos tempos futuros.
Sendo uma religião cujo panteão é composto, em São Paulo, por uma média de 16 orixás e algumas entidades como Caboclos e Boiadeiros, que são cultuados recebendo oferendas comidas e, principalmente, festas. pode-se ter uma idéia de seu grande número. Lembro ainda que um orixá só pode incorporar regularmente seu filho após ser "feito" (iniciado) em sua cabeça . Ao final da iniciação é realizada uma festa, chamada Festa de Saída (ou Festa de Iaô), pois acontece após o período de recolhimento para a "feitura", momento em que o abiã (aspirante à iniciação) torna-se um iaô (iniciado que, até ter dado a obrigação-confirmação de sete anos, recebe este nome). A iniciação (a "feitura") deverá ser confirmada após 1, 3, 5 e 7 anos de ocorrida, estendendo pelo tempo as festas de candomblé. Cada pessoa tem, ainda, pelo menos mais um santo (o juntó) e, às vezes até 7, compondo o que se chama, no candomblé, de "enredo de santo", e que deverão ser (todos) cultuados, comemorados. Caboclos e boiadeiros, entidades "paralelas" também costumam ser assentados (fixados) e recebem festas anualmente. Como os terreiros em geral têm muitos filhos, imagine-se a quantidade de festas em potencial.
Em São Paulo, excetuando-se a época da Quaresma, pode-se esperar assistir, nos finais de semana, a várias festas de candomblé, havendo ainda a possibilidade de escolha entre as diversas "nações" (ritos originários de diferentes regiões e etnias africanas, como ketu, fon, angola, jeje, etc.), terreiros, bairros e modalidades de festas (Festa de Saída de Iaô, Festa de Saída de Ogã, Festa de Saída de Ekede, Festa de Erê, Festa de Decá, Festa de Ogum, de Xangô etc.). A importância de se realizarem tantas festas é explicada pelos pais-de-santo Sidney de Ogum e Marcos de Obaluaiê:
"Tem candomblé que dá festa periodicamente a título de se mostrar, porque até no candomblé existe o que nós chamamos de propaganda; se você não mostrar o que é, um pouco, você não consegue atrair pessoas pro culto e ele se fecha, ele morre".
"A festa é onde a gente mostra a beleza, o que a gente sabe, os orixás da nossa casa".
Percebe-se, nestas palavras, uma das fortes razões de a festa ser realizada com tanta freqüência pelos terreiros: ela é uma espécie de "vitrine" da religião. É um modo de mostrar ao público a identidade do culto, muito mais ampla e complexa, mais bonita e lúdica do que o que possa parecer num contato com finalidades "instrumentais" com o culto, como é o caso da consulta ao jogo de búzios e da realização de ebós. A cena dos orixás vestidos com roupas brilhantes, com seus filás escondendo os rostos dos iniciados, é a cena da festa, freqüentemente vista em revistas, televisão, livros e discos. A festa mostra o que o grupo é. Nesse sentido a festa pode ser entendida como o "proselitismo" do candomblé.
Os terreiros que já contam com um determinado número de "filhos" (como são chamados os iniciados, pelos pais ou mães-de-santo) costumam estabelecer um calendário mais ou menos fixo de festas anuais e que pode ou não conter as festas particulares relacionadas com momentos da vida religiosa dos filhos da casa. Ou seja, no Ipetê de Oxum (uma festa especialmente dedicada à deusa Oxum), de um determinado terreiro, podem acontecer também, por exemplo, a saída de um iaô (iniciado) de Logum (orixá filho da deusa Oxum, no mito), de Oxum mesmo, ou de qualquer outro orixá (geralmente com alguma relação mítica com o orixá da festa), ou a entrega de um Decá (título de senioridade do candomblé, que o pai ou mãe de santo entrega ao iniciado após a obrigação de 7 anos).
Do calendário fixo geralmente constam apenas as festas oferecidas aos orixás considerados mais importantes para o grupo de um determinado terreiro. Quando não há um "motivo" específico para uma festa, a reunião visando à possessão dos iniciados pelos orixás recebe o nome de "toque". Ainda com este nome o ritual guarda suas semelhanças com a festa pois, como o nome indica, trata-se de uma cerimônia essencialmente musical. Canta-se e dança-se para cada orixá que então incorporam seus filhos, dançam e vão embora de volta à "África", encerrando com sua partida a cerimônia. Neste tipo de ritual não são usadas roupas especiais quando os orixás "viram" (incorporam), nem há a comida votiva dos deuses oferecida à assistência ao final das festas e que recebe o nome de ajeun. O toque pode ser entendido, portanto, como um chamado, uma oração, pedindo aos orixás que se façam presentes junto a seus filhos, trazendo seu axé (força vital) para fortalecê-los.
Os terreiros que seguem um calendário de festas geralmente o organizam do seguinte modo:
Em janeiro costumam acontecer muitas festas de caboclos, especialmente na época das festas para São Sebastião, quando também acontecem muitas festas para Oxossi. Em fevereiro, antes do Carnaval, acontecem muitas festas para Ogum (por ser o início do ano e Ogum o orixá que abre os caminhos, as portas, os períodos), o que também pode acontecer em abril (dia de São Jorge, santo em quem é sincretizado no estado de São Paulo) ou junho, quando ele é sincretizado em Santo Antonio. Por ocasião do início da Quaresma, faz-se o Lorogun (Festa de Oxaguiã), uma festa que encerra as atividades do terreiro até a Páscoa . Em junho são freqüentes as festas de Xangô (que é sincretizado, em muitos terreiros, com São João ou mesmo com São Pedro), geralmente realizadas junto a fogueiras. Em agosto é impressionante a quantidade de Olubajés, as festas de Obaluaiê (parece que ninguém se arrisca a desagradar o temido deus das doenças, sincretizado ora em São Lázaro, ora em São Roque). Em setembro acontecem centenas de festas de Erês (ou Ibeji, as entidades infantis do candomblé) em razão do sincretismo com São Cosme e São Damião, comemorados a 27 de setembro. Também em setembro ocorrem as tradicionais festas das Águas de Oxalá (um ciclo de três festas que se realizam durante três semanas), que também podem acontecer em dezembro, seguindo-se o preceito do candomblé de que tudo começa a partir de Exu e termina com Oxalá (inclusive o ano) que é sincretizado com Cristo. As festas dos orixás femininos, conhecidos como iabás, como o Ipetê de Oxum e o Acarajé de Iansã, costumam acontecer em dezembro devido ao sincretismo mas, a princípio, podem ocorrer em qualquer época do ano. As festas de Iemanjá, entretanto, raramente ocorrem fora dos meses de dezembro ou fevereiro, acompanhando o calendário das festas católicas de Nossa Senhora da Conceição ou da Candelária, ou ainda de Nossa Senhora dos Navegantes, nas quais é sincretizada a deusa das águas.
Além desse calendário, praticamente consensual entre o povo-de-santo, as festas podem ter motivos variados, como iniciações, obrigações, aniversário do santo (geralmente se faz esse tipo de comemoração só depois dos 7 anos de feitura), festa do santo patrono da casa, festa do orixá do pai-de-santo, festa oferecida a algum orixá por motivo de "agrado" ou agradecimento por alguma coisa, festa para os erês da casa, para os caboclos ou boiadeiros, enfim os motivos para a realização de uma festa são diversos e não faltam. Ultimamente algumas casas têm feito até festas de casamento no candomblé no próprio barracão, após a cerimônia religiosa. Estas festas não são previstas no calendário e tanto podem acontecer nos períodos entre aquelas que nele constam, como serem inseridas, de acordo com as possibilidades e/ou conveniência do terreiro, nas próprias festas constantes do calendário, uma vez que a preparação e realização de uma festa de candomblé, por mais simples que seja, exige recursos financeiros e humanos bastante consideráveis.
Preparando a Festa
Uma festa começa a ser preparada muito antes do dia marcado para sua realização, seja ela uma festa simples ou uma Festa de Saída (consideradas as de Iaô e de Decá as mais trabalhosas e caras de todas as festas). É preciso tempo para que sejam tomadas uma série de providências para conseguir recursos a fim de satisfazer os anseios de todos em relação ao acontecimento.
A perspectiva da festa mobiliza uma série de recursos econômicos e simbólicos, dentro e fora do terreiro, além de recursos humanos. Uma vez que se tenha o motivo, começa a preparação.
A mãe ou o pai-de-santo reúne o grupo e comunica que vai haver festa e que todos devem colaborar com trabalho, oferendas, dinheiro ou tudo isso ao mesmo tempo. Nessas ocasiões, geralmente, o pai-de-santo aproveita para avaliar a última festa mais uma vez e lembrar os "erros" cometidos, os problemas acontecidos e as soluções que foram dadas a eles.
Se o terreiro tiver condições para tanto, manda-se imprimir convites com data, motivo, endereço e até o traje adequado para a ocasião. Se o terreiro não tiver condições financeiras para isso, será mobilizada a rede de informação do povo-de-santo, que é eficientíssima. Essa rede passa por diversos ambientes freqüentados pelos adeptos do candomblé, especialmente as festas de outros terreiros, as lojas de artigos religiosos, escolas de samba, boates gays, além de mil telefonemas e, principalmente, através das relações de parentesco de santo e de nação.
Tendo sido reunidos os recursos para a compra dos artigos necessários, todos os membros do terreiro devem estabelecer uma espécie de "escala de serviço" na casa, pois sempre há necessidade de gente para dar conta de todos os detalhes da preparação da festa e que são muitos. Até mesmo os simpatizantes (clientes dos jogos de búzios e visitas presentes) são chamados a contribuir.
Para que a festa possa ser realizada é necessário que os adeptos se organizem também fora do terreiro. Como é preciso (e importante!) ajudar no trabalho da casa-de-santo, muita gente trabalha horas extras no emprego, não só para conseguir mais dinheiro e participar da festa, comprar uma roupa nova para o seu orixá, oferecer-lhe algo, mas também para ter tempo livre que possa ser usado nas tarefas do terreiro. É comum que pessoas que trabalhem em hospitais, por exemplo, "dobrem" seus plantões para ter um dia ou uma noite livres para dedicar-se aos afazeres da "roça". Há empregadas domésticas que abandonam o emprego para ser a "mãe-criadeira" de um iaô; diaristas que faltam ao serviço (com o risco de perderem o trabalho) apenas para poderem ajudar na "comida do santo". No caso dos iaôs, é costume aproveitarem os períodos de férias (do trabalho ou escolares) e se recolherem para a iniciação. Quem não trabalha "fora" como algumas donas-de-casa, deve providenciar quem cuide de seus filhos, maridos, suas casas. Quando não conseguem isto, elas levam seus filhos para o terreiro. Sempre se dá um jeito. Em época de "obrigação" nos terreiros é muito comum ver-se crianças nos terreiros brincando, com pedrinhas, de "jogar búzios". Elas brincam também de "dar dobale", "virar no santo", "fazer ebós" e outras coisas que vêem nesta convivência obrigatória com a prática do candomblé, ao acompanharem seus pais .
Com antecedência, deve-se lavar, passar e engomar as roupas de festa (sete saiotes para cada mulher que dance na roda-de-santo, são lavados, passados e engomados!), consertar as roupas dos orixás, que a cada festa perdem lantejoulas, pedras, rasgam-se devido ao movimento nas danças. É preciso polir as ferramentas (insígnias) dos orixás, as pulseiras e os adjás dos ebomis (que geralmente são confeccionados em latão ou zinco niquelado e escurecem com o tempo), pois eles devem imitar o brilho do ouro, da prata e do cobre, metais favoritos dos orixás. Além disso, devem ser respeitados tabus alimentares e sexuais; é preciso correr a cidade em busca de avícolas onde possam ser encontrados os animais caracteristicamente preferidos pelo orixá comemorado (e que não podem ter nenhum tipo de defeito físico), ao qual serão sacrificados - será preciso que haja um carro à disposição do terreiro para todo este circuito de compras - e depois sai-se à procura das folhas que comporão o amaci (banho de "limpeza") dos filhos-de-santo antes da festa. Se a casa tiver seus próprios alabês (ogãs tocadores de atabaques), muito bem. Se não, eles deverão ser contratados, pois uma festa não pode prescindir da música, já que é ela que "traz" os orixás ao mundo dos homens. É costume dizer, entre os adeptos, que "sem alabê não tem candomblé".
Às vésperas da festa os animais são sacrificados e as "comidas secas" (são chamadas assim todas as "comidas-de-santo" que não sejam animais sacrificados) oferecidas aos orixás. Essas comidas são preparadas pela iabassê da casa (cozinheira que prepara as comidas dos santos e que conhece os preceitos e "temperos" do gosto de cada orixá), auxiliada por ekedes e iaôs. Cada orixá come um prato específico, preparado de modo peculiar. Assim, Exu, como comida seca recebe farofa, dendê e pinga (no padê, no dia da festa). Ogum deve comer pelo menos um prato de feijão preto com cebolas; Oxossi receberá milho com mel e coco; Ossaim, feijão fradinho com coco e mel; Obaluaê um prato de pipocas; Xangô, um prato de quiabos (amalá); Oxumarê batatas doces ou amendoins cozidos com casca e mel. Oxum come ovos cozidos e omolucum (cuja base é o feijão fradinho). Logun-Edé se satisfaz com ovos cozidos, camarões, milho e coco; Iansã adora acarajés. Nanã, a deusa da lama e dos abismos pede folhas de mostarda com arroz; Obá divide com Xangô o gosto pelos quiabos enquanto Ewá gosta de frutas. O deus vegetal, Iroco, come verduras e cebolas, enquanto Iemanjá come arroz com mel e manjar branco e Oxalá, o senhor da criação, agradece um modesto prato de arroz branco, sem tempero e algum inhame pilado e cozido.
Todo este cardápio depende, entretanto, do que se chama de "qualidade" do orixá , que são avatares, caminhos do orixá e que são "partes ou segmentos da sua própria biografia mítica, ou representações de locais em que nessa forma foi ou é cultuado" (Prandi, 1989:157). Sendo assim, uma Iemanjá Ogunté, por exemplo, comerá arroz com feijão preto (devido às suas ligações com orixá Ogum) em lugar do simples arroz; isto acontece com todos os orixás. Todas as comidas rituais são preparadas levando-se em consideração os preceitos de cada orixá. A pipoca de Obaluaiê (doburu), por exemplo, deve ser estourada na areia quente e não no óleo. Quem o faz não pode falar enquanto prepara, e assim por diante.
Além do orixá homenageado, também Exu recebe sacrifícios animais. Exu, aliás, sempre recebe homenagens, qualquer que seja o tipo de festa ou trabalho que se realize no terreiro. Raras são, no entanto, as festas de Exu no candomblé.
No caso das festas de iniciação, depois do sacrifício ritual a cozinha do terreiro fica cheia de pombos, frangos, galinhas d'angola etc. para serem depenados e suas vísceras (axés), devidamente separadas e preparadas, conforme a preferência dos orixás a que se destinam. Os "bichos de quatro pés" (que podem ser porcos, cabritos, carneiros, tartarugas, coelhos etc., conforme o orixá homenageado) são "pelados" e limpos pelos ogãs. É muito comum serem vistas, curtindo ao sol nas casas-de-santo ou mesmo na forma de pequenos "tapetes", as peles desses animais. É conferindo as peles na parede que o povo-de-santo sabe (e verifica) quais foram os animais sacrificados. É costume se contarem as peles e ver se elas são novas.
Depois de limpos os bichos, cozinham-se as carnes, separa-se o que cada orixá deseja e, no dia seguinte são preparadas as comidas que serão servidas à assistência da festa, no ajeun. É preciso lembrar que as mulheres que cozinham as comidas do santo não podem, sob nenhuma hipótese, estar menstruadas, o que também pode representar um problema para a casa, que precisa estar ciente das datas de menstruação de suas filhas antes de marcar qualquer obrigação a que estas devam estar presentes. Por este motivo a iabassê quase sempre é uma mulher que já esteja na menopausa, garantindo-lhe as condições necessárias ao pleno desempenho de suas funções.